Curioso mundo em que os espaços foram encurtados pelos meios digitais, onde a formação da opinião pública e as ações políticas são realizadas em nível global. Organizações quilombolas e ditas de direitos humanos se arvoram em representantes da humanidade, dirigindo-se diretamente à ONU, a partir, por exemplo, de uma suposta violação dos "direitos" de uma comunidade na Ilha de Marambaia, de propriedade da Marinha brasileira. Neste momento em que o Senado se debruça sobre a CPI das ONGs, não seria demais dar uma olhada no modo de funcionamento de algumas delas.
Há uma ONG, denominada Koinonia, que está diretamente envolvida na ação quilombola que reivindica a Ilha de Marambaia, base dos Fuzileiros Navais. Ela atua como se estivesse diante de um problema de justiça social, sob o qual acoberta seu propósito ideológico. Na verdade, está ligada a auto-intitulados movimentos sociais que agem como organizações políticas.
No endereço da Koinonia, situado no Rio de Janeiro, estão também localizadas outras ONGs, como Os Verdes - Movimento de Ecologia Social, filiado à rede "Mata Atlântica", que comparece cadastrado no Ministério do Meio Ambiente como Biomas Mata Atlântica e Campos Sulinos. Lá também se encontram a Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids (Abia) e a DP&A Editora, que publica livros de ciências sociais, filosofia, educação e pedagogia. Estamos, portanto, diante de organizações que visam a formar o politicamente correto, misturando quilombolas, meio ambiente e aids. Preocupados com a formação da opinião pública, possuem uma editora que veicula as suas posições, tendo como objetivo influir na imprensa e na mídia em geral. Causas defensáveis junto à opinião pública como a dos negros, a do meio ambiente e a da aids se tornam, desta maneira, instrumentos de sua atuação, conferindo-lhes visibilidade política.
É importante observar que na composição do conselho editorial da ONG consta o nome de um procurador da República (MPF-RJ), que é a pessoa que deu início ao processo de desapropriação da Ilha de Marambaia como território quilombola. A situação é escandalosa, pois um procurador da República é, ao mesmo tempo, membro de uma ONG - logo, pertence a uma parte interessada na disputa, como se isso não revelasse conflito de interesses - e agente público. Os demais membros do conselho são antropólogos que se colocam a serviço da causa quilombola e preparam os relatórios técnico-científicos. Estes são, então, apresentados como se fossem neutros e isentos. Por si só, essa já seria uma razão para invalidar esses pseudolaudos.
A ONG Koinonia, em seu regimento, é explicitamente anticapitalista, o que significa dizer que seu propósito é socialista. O socialismo aparece sob os nomes de fraternidade, comunidade e solidariedade, que constituem a sua forma de apresentação. Desta maneira, ao assumirem valores morais, encobrem a sua finalidade propriamente política. Assim se apresenta ela: "Os serviços e projetos a que Koinonia se dedica estão marcados pela opção metodológica que designamos ação cultural, isto é, uma ação que privilegia as especificidades locais e o que de desafiador elas apresentam contra a lógica de um sistema capitalista crescentemente injusto e desumano."
Segundo consta de seu site, dentre os seus apoios internacionais se encontram as seguintes organizações: Ajuda da Igreja da Noruega, Conselho Mundial de Igrejas, Church World Service, Christian Aid, Fundação Ford, Igreja Unida do Canadá, Serviço das Igrejas Evangélicas na Alemanha para o Desenvolvimento, Igreja Anglicana do Canadá e União Européia.
Observemos que essas igrejas apresentam as suas ações como de solidariedade religiosa, tendo em nosso país uma atividade política. Imaginem se o inverso fosse verdadeiro! Uma ONG brasileira apoiando invasões e desapropriações de propriedades das Marinhas inglesa, alemã, norueguesa e canadense! Seria tal ação permitida? O que diria o Estado desses diferentes países? As suas respectivas opiniões públicas admitiriam tal interferência? Aqui, no entanto, tudo parece ser permitido, sobretudo a elas e aos "movimentos sociais". A presença da União Européia, por sua vez, é absolutamente escandalosa, pois uma federação de países atua num outro país, intervindo em ações que atentam contra propriedades das Forças Armadas e contra o direito de propriedade em geral. Imaginem também a seguinte situação: uma ONG financiada pelo Estado brasileiro interferindo no sistema de funcionamento das diferentes Marinhas européias! Como reagiriam as Forças Armadas desses países e suas respectivas diplomacias?
Confrontamo-nos, portanto, com uma situação completamente inusitada, em que igrejas internacionais, fundações e países financiam organizações políticas que têm como objetivo relativizar a propriedade privada, com um propósito claramente anticapitalista, como se o capitalismo não fosse o regime imperante nesses mesmos países que financiam essas organizações. Abundância de recursos é a sua marca. As publicações, como Existimos, são de luxo, muito bem diagramadas. Incentivos são, assim, dados a invasões rurais e urbanas, numa articulação que envolve os autodenominados movimentos sociais, o Incra, o Ministério das Cidades e a Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir).
Uma causa justa, a da regularização fundiária dos quilombos existentes, segundo consta da Constituição de 1988, está-se tornando uma questão propriamente política, graças a um decreto presidencial de 2003 que estabelece o arbítrio da autoclassificação da cor e da auto-atribuição de terras e propriedades como critérios de desapropriação e expropriação. Unem-se igrejas internacionais, fundações, federação de países, movimentos sociais e órgãos do próprio Estado brasileiro para destruir o Estado de Direito.
Denis Lerrer Rosenfield é professor de Filosofia
na UFRGS. E-mail: denisrosenfield@terra.com.br
(Texto publicado no jornal O Estado de S.Paulo de 10 de dezembro de 2007)