A discussão é a seguinte: o governo federal está elaborando um zoneamento agroecológico e a partir dele, e com base no aprimoramento do zoneamento agropecuário tradicional, vai elaborar ações para que a ocupação do território brasileiro, por meio da produção agropecuária, se dê em bases ambientalmente mais sustentáveis. Embora seja prematuro julgar o que vem por aí como resultado, o momento ainda permite discussões de cunho conceitual sobre implementação de políticas que emergirão a partir desse trabalho.
A motivação central para a preparação desse zoneamento é a constatação de que a preservação de florestas, matas e áreas ambientalmente mais frágeis não vai ocorrer da forma como o governo espera se o Estado brasileiro não interferir na expansão da produção agropecuária. A percepção aqui é de que as exigências ambientais já impostas sobre a agricultura pela legislação brasileira não seriam suficientes para garantir os objetivos de conservação e preservação a serem definidos, ou já definidos, por nosso atual governo.
Este artigo não visa a julgar esses objetivos. É importante, no entanto, avaliar as alternativas de políticas que podem ser utilizadas para que eles sejam atingidos. Existem duas alternativas mutuamente excludentes que precisam ser cotejadas: desenvolvimento de um conjunto de incentivos que levem os produtores a se alinhar com os objetivos de conservação e preservação, ou seguir pelo caminho do certo e do errado e buscar a implementação do certo, de acordo com o desejo de algum mágico formulador de política de Brasília, pela via da punição. Já posso afirmar que, avaliando os discursos de autoridades, a segunda alternativa é a preferida pelo governo brasileiro. O problema, e o governo precisa reconhecer isto antes de criar políticas que venham restringir o uso da terra pelos produtores, é que a alternativa da punição não vai funcionar.
O dilema entre uso de incentivos e do poder de coerção do Estado - neste artigo, chamado de punição - é um debate antigo na economia e no direito. Simplificando, economistas preferem a primeira opção e juristas tendem a preferir a segunda. O Estado brasileiro tem, por tradição, optado pelo caminho da coerção. Temos uma enorme dificuldade de formular políticas que estimulem a sociedade a buscar seu próprio equilíbrio. No Brasil, muito em função da nossa escassa tradição liberal, existe a percepção de que quem deve definir esse equilíbrio é o Estado. Quando o objeto de política é um bem público - no caso, florestas, matas e outros ecossistemas -, é aceito como dogma que apenas o Estado sabe dizer o que é certo ou errado e a sociedade, sendo incapaz de preservar os recursos naturais por auto-regulação, precisa ser guiada por leis e sistemas rígidos de punição.
Para dar um exemplo pertinente a este artigo, basta olhar o Código Florestal. Parece impressionante, mas, se existe um consenso que é propalado em unívoco entre produtores e ambientalistas, no Brasil e no mundo, é o fato de que a legislação florestal brasileira é uma das mais modernas da atualidade. Isso porque não se encontram por aí países que exijam que seus produtores preservem 20%, 35% ou 80% de sua propriedade com a vegetação florestal original da região onde ela está localizada. Estrangeiros tendem a se surpreender com isso e, freqüentemente, nos perguntam: que tipos de instrumentos o governo utiliza para incentivar o produtor a cumpri-la? A verdade é que não há incentivo algum para o produtor cumprir as exigências de conservação. Ele deve cumprir simplesmente porque está previsto em lei.
O que interessa aqui é que o Brasil optou pela alternativa da punição na definição do papel do setor agrícola na conservação florestal. O que defendo neste artigo é que, se o governo optar pelo caminho da punição nas ações que emergirão a partir do zoneamento agroecológico, vai fracassar. Nem os objetivos de estimular uma produção agropecuária mais amigável ambientalmente serão atingidos, nem o governo verá o setor produtivo engajado nesse processo. Se a punição funcionasse, o zoneamento agroecológico não seria necessário, porque o próprio Código Florestal estaria garantindo o equilíbrio entre produção e conservação.
Se, até hoje, o papel de conservação florestal do setor agropecuário foi imposto pelo Estado e, mais recentemente, pela ação das ONGs, essa experiência mostra que um equilíbrio balanceado só será alcançado se o agronegócio participar ativamente do processo. Coerção e punição, portanto, não são a saída. Incentivos são a única estratégia de política com alguma chance de sucesso.
Está em curso um processo de mudança no agronegócio: conservação de ecossistemas e redução de emissões de gases efeito estufa não são mais, necessariamente, entendidos como imposições exógenas. Ainda que lentamente, e circunscritos às cabeças das boas lideranças e dos pensadores do setor, ambos os itens estão se transformando em papéis naturais da atividade agropecuária. Se eu estivesse no papel de formulador de políticas, procuraria entender esse processo e tirar proveito dele.
O governo tem à sua disposição um leque de mecanismos de incentivos que podem ser utilizados para transformar o zoneamento agroecológico num objetivo do setor, em vez de uma imposição de Estado. Esses incentivos, no entanto, pressupõem um novo conceito de política agrícola, incluindo aí aquelas voltadas para produtores comerciais e familiares. Mais do que isso, esses instrumentos exigem um longo e transparente processo de negociação, que, na ótica do governo, pode não ser bem aceito. As políticas que nascerão do zoneamento agroecológico vão dizer-nos se o Estado brasileiro evoluiu o suficiente para aceitar a via dos incentivos como forma mais eficiente de buscar os objetivos de conservação e preservação no meio rural.
André Meloni Nassar é diretor-geral do Instituto de Estudos do
Comércio e Negociações Internacionais (Icone).
e-mail: amnassar@iconebrasil.org.br