Coitado do ganso

Xico Graziano *

O Dia dos Animais se comemorou em 4 de outubro. A data, mundial, coincide com a reverência a São Francisco de Assis. Católicos e ambientalistas comungam idéias. Na pauta da modernidade, cresce o endosso ao bem-estar animal, a nova disciplina da agropecuária.

O frade italiano, que viveu entre 1181 e 1226, amava os animais como pessoas, tratando a todos como irmãos. O apreço aos elementos da natureza adorna sua imagem, um pássaro no ombro, uma ovelha aos pés. Santo humilde, protetor dos animais.

Na história da agricultura os animais sempre penaram. No começo, foram caçados impiedosamente. Mais tarde, domesticados, serviram a duras tarefas. Para engordar rápido passaram a ser criados presos. Quanto mais a humanidade se entupia de gente, mais se confinava a bicharada em apertados espaços. A tecnologia aumentava o rendimento de carne, decaía o conforto animal.

Ninguém ligava. Somente nas últimas décadas, na Europa principalmente, surgiram contestações ao método confinado de criação dos animais. Começou pela suinocultura. O porco foi o primeiro animal, com fins alimentares, a ser domesticado pelo homem.

Veterinários notaram que o aperto nas baias provocava canibalismo. Orelhas e rabos não resistiam ao stress do rebanho, que elevou à incidência de doenças degenerativas. Abatida, a carne perdeu durabilidade na geladeira. As fêmeas gestantes, sem espaço nas gaiolas, sofrem traumatismo. Enfim, sofrimento a rodo chegou aos animais em nome da produtividade.

Os consumidores, liderados por grupos ambientalistas, de proteção aos animais, reagiram. Exigiram, sob pena de boicote ao consumo, mudanças na produção. A Inglaterra liderou tal movimento na suinocultura. Estimulou a criação dos animais em grupos, soltos no campo. Surgia, definitivamente, o conceito do bem-estar animal. O marketing fez o resto, trabalhando a imagem dos porquinhos saudáveis e felizes, saltitantes na natureza. O mercado adorou.

Em 1991, os países europeus estabeleceram normas de bem-estar na produção de vitelos. A avicultura começou também a ajustar sua agenda, cedendo aos apelos ecológicos. O movimento contra o sofrimento dos animais não parou de crescer. Na reforma da Política Comum Européia (PAC), em 2003, introduziu-se a norma da condicionalidade. Significa punir o agricultor que, a partir de janeiro de 2007, não adotar os novos preceitos. Perderá parte dos subsídios agrícolas. A moleza acabou.

Nos EUA, o tema esquentou por causa do ganso. Ou melhor, do patê de seu fígado. Vários Estados, Califórnia à frente, sancionaram leis proibindo a alimentação forçada de aves. O método, utilizado para produzir o pâté de foie gras, é considerado cruel há séculos, desde quando se pregavam os pés dos gansos numa tábua, entupindo seu papo, através de um funil, sem que o coitado pudesse sair do lugar. Ainda hoje as aves são obrigadas a engolir uma mistura de ração gorda em quantidade muito superior àquela que ingeririam voluntariamente. A papa nojenta, introduzida pelo esôfago num funil, degenera o fígado, dando-lhe amargor. Em certos casos se coloca um anel elástico apertado no pescoço do bicho para ele não regurgitar. Ao fim de quatro semanas o fígado desses animais fica 12 vezes maior que seu tamanho natural. Um horror.

A técnica cruel já foi proibida em 15 países, entre eles Alemanha, Itália, Israel e Grã-Bretanha. No Brasil, o assunto é quase desconhecido. Por aqui, as novas tendências da produção animal ainda capengam. Parece, infelizmente, que a miséria humana abafa a crueldade erigida para satisfazer a fome.

Há progressos. No sul do País já se utiliza, desde 1987, o Sistema Intensivo de Suínos Criados ao Ar Livre (Siscal), como é conhecido entre os especialistas em etologia, a ciência do comportamento animal. Nos demais ramos da zootecnia, técnicas recentes visam a ambientalizar o criatório. Aos poucos, o mundo tupiniquim se move.

Animais criados em verdadeiras fábricas de carne, recintos sofridos que confundem animais com máquinas, acabam estimulando o vegetarianismo. Claro. O assunto é pesadelo para os pecuaristas. Sem comprovarem o bem-estar dos animais, podem cair o consumo e a exportação. Carne sofrida perde saída.

Os vegetarianos, porém, não se curvam facilmente. Denunciam que a agenda do bem-estar animal não rompe o pior, qual seja, a condição de mercadoria dos bichos. A criação dos animais serve, apenas, para satisfazer interesses econômicos dos humanos. Melhor mesmo, defendem, é comer somente vegetais, que não andam, nem gritam, nem pensam. A polêmica, difícil, envolve dogmas elitistas.

Para o povo mesmo, no Brasil rural, a diferença surgiu recentemente com Monty Roberts, o famoso encantador de cavalos. O domador norte-americano amansa eqüinos bravios utilizando uma técnica revolucionária, baseada na comunicação da vida selvagem. Na doma, homem e cavalo estabelecem uma relação de confiança e respeito mútuo. Sem nenhuma violência. Doma gentil!

Peões de boiadeiro, País afora, descobriram o respeito animal vendo o trabalho do encantador de cavalos na televisão. Ninguém acreditava que seria possível domar um burro bravo, ou um potro inteiro, sem maltratá-lo com esporas, bridão, gritos e pancadaria. Bom exemplo.

Humildade é o traço forte do caráter de São Francisco de Assis. No fundo, foi a prepotência humana que gerou as sofridas fábricas de carne. O respeito aos animais é o melhor traço da nova ética da agropecuária.

* Xico Graziano, agrônomo, é secretário do Meio Ambiente do Estado de São Paulo. Texto disponível no site www.xicograziano.com.br 

Boletim Informativo nº 978, semana de 15 a 21 de outubro de 2007
FAEP - Federação da Agricultura do Estado do Paraná
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