Em que pese a reconhecida capacidade de gestão e eficiência microeconômica da maioria dos agricultores, incluindo os pequenos, o setor vive em uma situação permanente de crise financeira. Lá se vão anos sem que as dívidas do setor não sejam, pelo menos parcialmente, renegociadas, impondo custos elevados para a sociedade e para a própria agricultura, já que os recursos alocados na renegociação deixam de financiar novos projetos.
Mesmo reconhecendo a importância do setor e as dificuldades enfrentadas pelos agricultores - das estradas e insegurança jurídica à elevação desenfreada do custo de produção -, há que se indagar sobre as causas, limites e distorções das sucessivas renegociações da dívida agrícola. A inflação e as intervenções intempestivas do governo nos mercados agrícolas, que no passado levaram o setor à beira da bancarrota, não são mais justificativas válidas. Estudo de Gervásio Castro de Rezende e Ana Kreter, pesquisadores do Ipea, levanta novas hipóteses, além da já reconhecida instabilidade da renda por causa dos fatores climáticos e do oportunismo, inevitável sempre que se abre a porta da repactuação contratual.
Segundo os autores, as crises financeiras agrícolas se devem, em grande parte, à facilidade com que vem sendo fornecido o crédito - sobretudo o de investimento - a um setor tão arriscado quanto o agrícola. A estimativa dos autores, que não inclui aplicações do Banco do Nordeste e do da Amazônia, indica que a dívida de investimento dobrou entre 1999 e 2004 e que em maio de 2007 representava a metade do endividamento total. Para bancar os financiamentos foram utilizados os chamados recursos obrigatórios, oriundos das exigibilidades sobre depósitos à vista e caderneta de poupança do Banco do Brasil, e os recursos repassados do FAT e dos Fundos Constitucionais.
O aumento do fluxo de recursos para investimento foi certamente positivo e permitiu ao setor superar o longo período de semi-estagnação da década de 90. O problema, segundo a hipótese do estudo, é o sobreendividamento decorrente da combinação da oferta de fundos públicos de fácil acesso com falta de rigor no processo de screening e seleção dos mutuários em um contexto de considerável elevação do risco. As fontes de variabilidade da renda agrícola cresceram, sobretudo a partir de 1999, por causa do regime de câmbio flutuante. Em uma economia aberta, só por coincidência os preços domésticos subirão para contrabalançar a quebra de safra; tampouco compensarão os movimentos do câmbio.
Como os produtores operam com margens bastante reduzidas - por causa, principalmente, das ineficiências sistêmicas -, basta uma pequena queda da renda por qualquer razão para comprometer a capacidade de pagamento. O sistema não está levando em conta esses riscos. Ao contrário, uma série de fatores alimenta o endividamento.
O primeiro é o risco moral associado ao poder político da Bancada Ruralista: Não há por que qualquer agricultor temer riscos, (...) e levar em conta, em suas decisões (...) a possibilidade de ocorrência de eventos negativos (...) que são subestimados sistematicamente. A certeza da renegociação provoca, do lado dos agricultores, um entorpecimento da percepção de risco. Como raramente o sistema financeiro perde com a renegociação, não há por que melhorar o screening para separar oportunistas dos bons pagadores, que, eventualmente, têm de fato dificuldades para honrar os contratos. Outra razão apontada é a inadequada legislação trabalhista, que estimula a mecanização facilitada pelo crédito fácil.
O Congresso está examinando proposta de renegociação que envolve R$ 15 bilhões de dívidas agrícolas vencidas e R$ 60 bilhões de dívidas novas, concentradas em créditos para máquina agrícolas e em setores como soja, milho, algodão e arroz, que mal têm gerado renda líquida para cobrir gastos operacionais, em particular no Centro-Oeste. Até agora se tem empurrado com a barriga e para o futuro o pagamento das dívidas. A conta irá explodir em 2008 com as faturas das parcelas atrasadas das safras 2003/2004, 2004/2005 e 2005/2006.
Independentemente dos oportunistas, carregando todo o peso da ineficiência sistêmica, poucos terão, de fato, condições de honrar o pactuado no passado. Está na hora de falar sério, deixar interesses particulares de lado, estabelecer regras sustentáveis e pôr em ação um projeto para viabilizar a agricultura brasileira.
Antônio Márcio Buainain é professor do Instituto de Economia da Unicamp buainain@eco.unicamp.br
(Publicado no O Estado de S. Paulo, de 11 de setembro de 2007)