Pioneiros foram os quilombolas da Comunidade Boa Vista. Situada em
Oriximiná, no Pará, receberam seu título
agrário em 24 de novembro de 1995. Em mãos. Às
margens do rio Trombetas choraram de alegria. Nascia ali, porém,
uma perversão.
Claro está a Constituição. O artigo 68, das
Disposições Transitórias, afirma: “aos
remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas
terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado
emitir-lhes os títulos respectivos”. Preciso.
Ninguém poderá discordar.
Na comemoração dos 300 anos de Zumbi, o imperativo
constitucional oferecia ao então presidente Fernando Henrique
Cardoso o direito de favorecer os quilombolas do Pará. Ao Incra
coube emitir o título da terra. Justiça era feita, pela
primeira vez, aos povos perseguidos da raça negra. O Brasil,
como se vê, começou antes do governo Lula.
Facilitou o trabalho do governo, na época, a firme
atuação dos antropólogos da Comissão
Pró-Índio, de São Paulo, junto à
associação criada pelos próprios remanescentes em
Oriximiná. Não havia dúvidas. Naquela distante
beirada de rio, centenas de famílias viviam e produziam
espalhadas no meio do mato, fugidas sabe-se lá quando do mando
escravista.
Durante todo esse tempo, escondidos da civilização,
cultivaram suas origens. Jamais abandonaram sua cultura, guardando o
segredo dos costumes históricos. Para eles legislaram os
constituintes de 1988, assegurando-lhes o direito das terras que,
afinal, sempre ocuparam. O conceito fundamental da boa reforma
agrária diz: “a terra para quem nela trabalha”.
Na década de 90, sabia-se existir inúmeras comunidades
remanescentes de quilombos no país. Talvez umas 500. Ao governo
caberia identificá-las devidamente, delimitar seus
perímetros, dando seqüência ao processo de
regularização fundiária. Não era
complicado.
Mas a ousadia do governo levantou temores na oligarquia. Ocorre que
várias comunidades quilombolas haviam sido invadidas durante a
expansão da fronteira agrícola. O progresso no campo
aproximava mundos distantes. Sobreveio o litígio agrário.
Não sendo pacífica a posse da terra, o artigo 68 da
Constituição exigia regulamentação.
Era processual o maior problema. Donos de terra em áreas
supostamente quilombola exigiam indenização. Não
apenas das benfeitorias, mas da propriedade rural. Ora, se a
Constituição estabelece, peremptoriamente, que pertence
aos remanescentes de quilombos as terras que ocupam, como poderia o
governo pagar para os brancos, invasores, para de lá
saírem?
O imbróglio jurídico amarrou o assunto. Mesmo assim,
dezenas de conhecidas comunidades quilombolas obtiveram, com ajuda da
Fundação Palmares, seu titilo fundiário. Tudo
limpo, sem problemas.
Passou o tempo. Lula venceu as eleições e, logo em 2003,
quis modificar a matéria. Baixou o Decreto 4887/03, dando
poderio total ao Incra para dirimir eventual conflito sobre a
propriedade da terra ocupada pelos quilombolas. Facilitou aos tomadores
de decisão. Até ai, tudo bem.
A grande insensatez do governo petista, porém, se expressa no artigo 2.º, do referido Decreto. Nele se estabelece que a caracterização dos remanescentes de quilombos será atestada mediante “auto-definição” da própria comunidade. Na roça, isso se chama “porteira aberta”.
Virou uma correria. Militantes políticos saíram a
campo para mobilizar quietas comunidades negras, vendendo-lhes o
paraíso. Começou a aparecer quilombola pra tudo que
é lado. Recente mapa da UnB identifica 2.228 comunidades
quilombolas no país, espalhadas por todas as regiões.
O primeiro cadastro, de 2000, apontava 840 localidades. Há quem
afirme que já são 3.524 comunidades esperando a
possível redenção. Outros apontam 5 mil.
A maioria das, pretensas, comunidades quilombolas está
concentrada na faixa litorânea. É curioso. Nada a ver com
os remanescentes de Oriximiná, embrenhados no interior
longínquo. Nem com os Kalungas goianos, fugidos para veredas
distantes do cerrado.
A excessiva politização favorecida pelo governo de plantão roubou, do conceito de quilombo, o dado fundamental, qual seja, a ocupação da terra. Passou a significar, conforme apontou Denis Rosenfeld, uma genérica comunidade de cor, sentimentos e afinidades. Sob a definição do governo petista, quilombola significa todo descendente de escravos, sem vínculo territorial. Um absurdo.
O Brasil precisava, sim, corrigir a injustiça social cometida
contra os fugidios da escravidão. Significava resolver um
problema histórico. Porém, certa ideologia tupiniquim,
aquela que mistura revanchismo com esquerdismo, ao invés de
ajudar, criou um novo, e maior, problema para a sociedade.
A área reivindicada pelas comunidades quilombolas ultrapassa 25
milhões de hectares, maior que o território paulista. A
pretensão não guarda qualquer relação com a
posse, ou exploração, da terra. Basta se declarar
remanescente de quilombo, e apontar onde seus ancestrais viveram. O
assunto descamba para a vendeta.
Haverá, por certo, frustração de expectativas. O
proselitismo político inconseqüente, que vende
solução milagrosa para afirmar sua prepotência
neo-revolucionária, deixará seqüelas. Rancores
serão criados. Novos ódios surgirão.
Aumentará, ao invés de diminuir, a questão racial.
O perigo, mais uma vez, é a conta sobrar para os agricultores
sérios do país. Logo aparece algum boboca dizendo que a
culpa é do agronegócio. Definitivamente, quem criou o
problema mora na cidade.
Texto disponível na página www.xicograziano.com.br