A invenção de quilombolas está se tornando uma
perigosa prática nacional. Tanto mais perigosa porquanto
encontra respaldo jurídico num decreto presidencial de 2003 e
apoio político-administrativo em órgãos como o
Incra, do Ministério do Desenvolvimento Agrário, e a
Fundação Palmares, do Ministério da Cultura. Ora,
um decreto presidencial, ato administrativo do Poder Executivo,
não poderia regulamentar um artigo constitucional, o 68, que
dispõe sobre os quilombos, requerendo uma lei complementar, cuja
aprovação é atribuição do Poder
Legislativo. Por outro lado, órgãos como o Incra e a
Fundação Palmares se tornaram ideologicamente engajados,
tendo como objetivo central relativizar a propriedade em nome de
supostas funções raciais e sociais, atentando, inclusive,
contra o Estado de Direito.
O decreto estipula a autodefinição enquanto
critério da negritude e a conseqüente
auto-atribuição de terras e propriedades rurais e urbanas
como condições de desapropriação. O
arbítrio da autodefinição e da
auto-atribuição se torna, então, a regra de
ações ditas quilombolas, não sendo
necessário, por exemplo, que essas pessoas residam nesses
locais. Ou seja, não é necessária a
existência de quilombos, como estipula a
Constituição. Não seria a primeira vez na
História que ações “legais” atentam
contra o Estado de Direito, numa deriva autoritária que pode
pôr em questão os fundamentos mesmos da democracia
representativa.
A Ilha de Marambaia, no Rio de Janeiro, para quem não a conhece,
é uma base dos fuzileiros navais. Um local esplêndido. A
União comprou-a por “95 contos de réis” em
1905 e a transferiu para a Marinha em 1906. O seu título de
propriedade remonta à fazenda do comendador Breves, tudo estando
devidamente documentado. Em função de vicissitudes
históricas do Estado brasileiro, em 1938 lá funcionou uma
escola de pesca, desativada em 1971. Em 1981, foi instalado o Centro de
Adestramento dos Fuzileiros Navais, encarregado do treinamento de seus
membros. Está aos seus cuidados a conservação da
ilha, que em nada interfere no que diz respeito às suas
atividades propriamente militares. Trata-se de uma magnífica
reserva ecológica, que vem sendo cuidadosamente preservada pela
Marinha, com mata nativa e toda uma fauna e uma flora
riquíssimas. Universidades lá realizam pesquisas.
Não há plantações nem cultivo de
espécie alguma. É quase um milagre que essa
conservação tenha sido garantida, haja vista a
destruição ambiental ocorrida em outras ilhas ao redor.
Mas nem milagres parecem resistir à arbitrariedade. Um grupo
orientado por uma ONG, cuja direção é formada por
pastores e bispos metodistas, anglicanos e presbiterianos, fomenta e
reclama essa área como “quilombola”, tendo como
respaldo o Decreto Presidencial 4.887. Habitam a ilha, além dos
fuzileiros, 106 famílias, que vivem basicamente da pesca, de
cesta básica, Bolsa-Família e aposentadorias. Até
a intervenção dessa ONG não havia conflitos
“raciais” na ilha. Aliás, sua
população é completamente miscigenada, algo
tipicamente brasileiro, segundo diversos matizes, vivendo em pequenas
áreas costeiras. Suas moradias têm cerca ao redor,
configurando, assim, a sua posse. Nada mais simples, do ponto de vista
social, do que conceder direitos reais de uso a essas famílias
em suas áreas respectivas, já delimitadas. Aliás,
essa é proposta da própria Marinha.
Ora, o que quer essa ONG, com o apoio da Fundação
Palmares e do Incra? Nada menos que 16 milhões de metros
quadrados para 106 famílias, tornando-as
“proprietárias” de praticamente metade da ilha e de
quase toda a sua baía. Mas o que pretendem realmente? Tomar
posse de paredes rochosas e da mata nativa? Destruir a reserva
ambiental para lá “plantar” alguma coisa? Ou talvez,
sob o belo nome de “turismo étnico”, dar
início à especulação imobiliária? O
que está realmente por trás de tudo isso? Há
laudos ambientais segundo os quais não é
aconselhável a ocupação humana dessa área
de preservação, objeto precisamente dessa
ação “racial”.
É curioso que o “laudo racial” que serviu de base
para instrução do processo junto à
Fundação Palmares e ao Incra tenha sido feito pela
própria ONG. Ela seria simultaneamente parte,
“juíza” e incentivadora de tudo o que acontece,
estando milagrosamente em todos os lugares ao mesmo tempo, numa
ubiqüidade ideológica digna de seres que agem segundo uma
“causa” tida por “absoluta”. Ela fornece,
assim, os “relatórios
técnico-científicos”, que deveriam ser mais
apropriadamente denominados
“técnico-ideológicos”, como se, dessa
maneira, a legalidade estivesse sendo preservada.
Imaginem o que - se nem a Marinha é respeitada - poderia bem
acontecer com os pequenos proprietários rurais e urbanos,
confrontados com “reivindicações raciais”
dessa espécie. Quem os defenderia? Há todo um
símbolo aqui em jogo. Se a Ilha de Marambaia for desapropriada,
a mensagem passada é a seguinte: se nem as Forças Armadas
resistem a nós, o caminho está aberto a novas
ações que podem reformatar completamente as
relações de propriedade e, mesmo, partes inteiras do
território nacional. Um trabalho preliminar, nesse sentido,
já foi feito pela Universidade de Brasília, que construiu
um “mapa racial” brasileiro, que serve de
orientação para as ações ditas quilombolas.
Unidades da Federação seriam amputadas de uma parte
considerável de seu território, não importando a
existência de títulos de propriedade privados ou
públicos, nem a própria existência de cidades.
Sabemos que bastam os critérios arbitrários da
autodefinição e da auto-atribuição para dar
início a uma reivindicação desse tipo, não
valendo os direitos de propriedade, por mais antigos e legais que sejam.
Surge uma nova legalidade, a legalidade do arbítrio, passando a
legislar sobre tudo. Estamos entrando no terreno da
exceção em nome de supostos critérios de
raça, criando o apartheid que não fez parte da
História nacional.
Denis Lerrer Rosenfield é professor de Filosofia na
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
(Texto publicado no jornal O Estado de S. Paulo de 23 de julho de 2007)