Algo de errado acomete as finanças da agropecuária
nacional. Quanto mais o campo se desenvolve, mais produtores se
penduram na carteira do banco. O endividamento do setor rural triplicou
em dez anos, atingindo R$ 131 bilhões. Alguém trabalha,
outrem ganha.
O governo se gaba. Acaba de anunciar que a
agricultura terá crédito de R$ 70 bilhões para o
plantio da próxima safra. O recurso ultrapassa 16% o valor
anterior. Caiu ainda a taxa de juros do custeio básico, de 8,75%
para 6,75%. Aumenta, a cada ano, o crédito rural.
A dívida rural, porém, também
se eleva continuamente. A somatória dos débitos já
ultrapassa 60% do Produto Interno Bruto (PIB) da agricultura. Tal
proporção, em 1995, representava 35%. Piora a cada safra.
É contraditório. O agronegócio
vai bem. Evolui a área plantada, rebanhos se multiplicam, a
tecnologia se moderniza, as exportações estouram. As
fronteiras se expandem, a agroindústria se multiplica. Tanta
pujança no campo, todavia, menos se reflete no bolso do
agricultor. O agronegócio lucra, o agricultor se aperta.
O endividamento do campo surgiu, ou melhor, aflorou
em 1994, com a estabilização da economia. Antes do Plano
Real, ninguém sabia, na verdade, quanto devia. Nem interessava.
Através do conhecido “mata-mata”, tomava-se
crédito para quitar o débito anterior. Empurrava o buraco
para frente.
A ciranda financeira, com tudo indexado, resultava
num ciclo vicioso. Agricultores, como tantos na economia, dedicavam-se
mais a gerenciar seu caixa bancário, menosprezando a
produção. Parecia mágica. Dinheiro do cheque
especial pagava conta de adubo; crédito de custeio virava
caminhonete. A ilusão monetária permitia qualquer
trambique. Trabalhar menos valia.
Quando a nova moeda assoprou, definitivamente, a
fumaça da inflação, o rombo acabou descoberto. Com
um agravante. Famigerados planos econômicos, anteriores ao Real,
provocaram um descasamento entre as dívidas rurais e os
preços agrícolas. Criou-se um fosso entre a receita e o
custo da produção.
Durante bom período, naqueles anos,
atordoados e temerosos, milhares de agricultores fugiram dos bancos.
Depois, ameaçados de execução judicial, tomaram
coragem para espernear. Assim promoveram, em 1995, o primeiro
tratoraço em Brasília. Quando Fernando Henrique decidiu,
corretamente, securitizar as dívidas do setor, foi aí que
o sistema bancário, puxado pelo Banco do Brasil, barbarizou.
Taxas de inadimplência, multas contratuais e demais
sem-vergonhices financeiras engordaram os débitos
agrícolas. Resultado: quem financiou um trator, acabou devendo
quatro.
De lá para cá, nunca mais a
situação se normalizou. Sucessivas rolagens trouxeram
à situação presente. Há, também,
débitos novos. Entre 2004 e 2006 verificou-se recuo na renda da
agropecuária, causada pela queda dos preços
internacionais, combinada com a valorização do
câmbio. Pesou, também, o elevado custo do óleo
diesel, dos fertilizantes e agrotóxicos. Conjuntura perversa.
O xis da questão do endividamento rural
está na instabilidade da renda. Sabe-se que existe época
de vaca gorda, entremeada com fase de vaca magra. No caso brasileiro,
entretanto, conforme denominou Marcos Jank, o problema não
é cíclico, mas ciclotímico. O humor da agricultura
varia de eufórico para depressivo em tempo recorde.
Uma espécie de psicose
maníaco-depressiva do campo se alimenta no sistema de
crédito rural. Nos momentos de bom ganho, os empréstimos
ultrapassam, num piscar de olhos, a própria capacidade de
pagamento. Foi o que ocorreu no começo dessa década.
Produtores rurais financiaram máquinas acima do
recomendável. Enquanto a carência se cumpria, céu
de brigadeiro. Dois anos depois, porém, as parcelas do principal
fritaram o freguês. Tempestade brava.
Corda de enforcado. Crédito subsidiado, sem
amparo no planejamento cuidadoso, pode criar nova dependência,
quando não leva à falência e à perda da
terra. Esse processo acaba por enfraquecer o campo. Onde está o
equívoco?
Ao invés de mais crédito, carece a
agropecuária de um sistema de seguro, capaz de oferecer maior
estabilidade à sua renda. Ano passado, cerca de R$ 50
bilhões engordaram as carteiras de financiamento. No seguro
rural, entretanto, o dispêndio mal atingiu R$ 40 milhões.
Menos de 0,1% dos empréstimos. Aqui reside a grande fragilidade
da agropecuária nacional.
Há uma década, desde a crise
pós-Plano Real, restou claro que o objetivo básico da
política agrícola deveria ser a proteção da
renda. A lição se perdeu no tempo. Agora, nova rolagem
será efetuada, prorrogando parcialmente dívidas no valor
de R$ 6,5 bilhões. Filme velho. Empurra com a barriga a montanha
do endividamento rural.
Polan Lacki, agrônomo ligado a FAO, escreveu
certa vez instigante artigo, onde perguntava: “No guichê do
banco ou no banco da escola?”. Tentava ele responder aos dilemas
do desenvolvimento rural latino-americano. Fica claro, aos estudiosos
da economia rural, que a grande massa dos agricultores carece de
educação empreendedora. Um choque de profissionalismo e
consciência empresarial. Rumo à tecnologia.
Crédito rural somente funciona bem quando
vinculado a projeto técnico de produção, amparado
por mecanismos de proteção da renda do agricultor. Fora
disso, coberto pelo Tesouro, dinheiro farto alimenta a malandragem e
cultiva oportunistas. Agricultor que se preze gosta de trabalhar duro.
Sabe que filho mimado, com mesada fácil, não aprende a
viver.
Xico Graziano, agrônomo, foi presidente do Incra e é secretário do Meio Ambiente do
Governo do Estado de São Paulo. (www.xicograziano.com.br)