O mínimo que uma política oficial pode fazer, em sua
justa pretensão de proteger a herança cultural e os
remanescentes de determinado grupo social, é comprovar,
preliminarmente, sua existência real e histórica. Haveria
sentido, por exemplo, em garantir reservas exclusivas de terras a uma
tribo indígena apenas lendária, sem nenhuma
comprovação de existência histórica,
só porque um grupo de pessoas se diz dela originário?
Embora não se trate de questão da
mesma natureza, assim como o Estado brasileiro cuida de preservar o
legado cultural das diversas etnias indígenas que remanescem em
inúmeros pontos do território nacional, demarcando-lhes
reservas (independentemente de estas poderem ser consideradas ou
não superdimensionadas - dado que as necessidades de
espaço das populações deste século
não podem se equiparar às daquelas de muitos
séculos atrás), é natural que também sejam
preservadas as tradições comunitárias dos
quilombos - povoações de tipo africano, nos
sertões brasileiros, formadas por escravos fugidos, cujos
habitantes passaram a ser denominados quilombolas. Mas como sói
acontecer quando exageros ideológicos extrapolam quaisquer dados
antropológicos, passou-se no País a uma verdadeira
“produção” de quilombos, sem paralelo com os
dos tempos da escravidão.
Escreveu o jornalista Marcos Sá Corrêa
- em artigo de nossa edição de quarta-feira, 4/07 (leia
artigo na página anterior) - que “nenhum brasileiro
precisa ir muito longe para encontrar um quilombo nascendo, com selo
oficial, praticamente na esquina de casa. Se alguma coisa está
acontecendo pela-primeira-vez-na-história-deste-país ou
mesmo deste planeta é que, 120 anos depois da Lei Áurea,
o Brasil produz quilombolas como nunca”. A origem dessa grande
expansão quilombólica está, sem dúvida, no
Decreto 4.887 de 2003. Entre outras coisas estabelece ele que “a
caracterização dos remanescentes das comunidades dos
quilombos será atestada mediante autodefinição da
própria comunidade”. E determina que, “para a
medição e demarcação das terras,
serão levados em consideração critérios de
territorialidade indicados pelos remanescentes das comunidades dos
quilombos”. Essa regra legal não abre a possibilidade de
que qualquer grupo de pessoas - sejam elas afrodescendentes ou nem
tanto - resolva reivindicar (com base na simples
autodefinição) estas ou aquelas terras? E, se a
“autodefinição” é bastante, quem
exigirá comprovação da condição de
quilombola remanescente?
Certamente, não o governo do presidente Lula,
que ainda na semana passada, em um dos seus discursos cotidianos,
prometeu atender a toda e qualquer reivindicação de
“autodefinidos” quilombolas.
O artigo faz referência ao que ocorre na
Reserva Biológica do Guaporé, que está na mira de
um processo de titulação dos moradores de Santo Antonio -
povoado esse que, dentro do refúgio natural, não passa de
17 famílias, ocupando 200 hectares de terra firme, numa
planície encharcada de Rondônia. Com sua
“generosidade em privatizar o patrimônio
público”, o Instituto Nacional de
Colonização e Reforma Agrária (Incra) resolveu que
essas 17 famílias de quilombolas precisam de, no mínimo,
86 mil hectares para viver. Já o Ibama, depois de ouvir os
próprios quilombolas, concluiu que bastariam 3,5 mil hectares da
reserva para os moradores de Santo Antonio viverem, como fizeram
até hoje, dos roçados de subsistência, da
criação de animais domésticos e da pesca.
Até o líder comunitário Zeca Lula, que preside a
Associação Comunitária Quilombola e
Ecológica do Vale do Guaporé, acha que bastariam 44 mil
hectares para aquele grupo - quer dizer, metade do ofertado pelo Incra.
Dessa forma, se não bastasse a generosa
presunção legal pela qual quilombola é quem se diz
quilombola e quilombo é tudo o que o quilombola acha que
é seu, vem o órgão público encarregado da
reforma agrária estimular ao máximo a
“produção” de quilombos - e haja quilombolas
para preenchê-los! E aqui vem outra situação, no
mínimo, esquisita: a Ilha da Marambaia, às portas do Rio
de Janeiro, pode passar, depois de cem anos, da Marinha para 379
moradores. Estes ganhariam quase 70% dos 82 quilômetros quadrados
de litoral preservado pela reserva militar. E o mais interessante
é que entre os quilombolas da Marambaia 21%, espontaneamente, se
consideram “brancos”...
Editorial do jornal O Estado de S. Paulo, de 10 de julho de 2007