Nem escravidão criou
tanto quilombo

Marcos Sá Corrêa*

Pobre Reserva Biológica do Guaporé. Ela está na mira de um processo para titulação dos moradores de Santo Antônio. O povoado, dentro do refúgio natural, não passa de 17 famílias. Ocupa 200 hectares de terra firme, numa planície encharcada de Rondônia. Mas, pródigo como sempre que se trata de privatizar o patrimônio público, de preferência nas últimas fronteiras selvagens do território brasileiro, o Incra resolveu que as 17 famílias não cabem em menos de 86 mil hectares.

    É muita bondade do Incra. Oitenta e seis mil hectares dariam para fazer quase três parques nacionais como o de Itatiaia, que acaba de completar 70 anos e, mesmo sendo o decano das unidades de conservação no País, espera sentado numa pilha de conflitos históricos sua regularização fundiária. O Ibama, depois de ouvir os quilombolas, concluiu que bastariam 3,5 mil hectares da reserva para os moradores de Santo Antônio viverem, como fizeram até hoje, dos roçados de subsistência, da criação de animais domésticos e pesca. Enfim, José Soares Neto, ou Zeca Lula, garante que os quilombolas se contentariam com 44 mil hectares. Ou mais ou menos a metade do que lhes propôs o Incra. Pelo rigor dos números, se vê como a história do quilombo está bem contada.

    Zeca Lula preside a Associação Comunitária Quilombola e Ecológica do Vale do Guaporé. É vereador, em terceiro mandato. Reside na cidade de Costa Marques. E argumenta que a reserva só se salvou da apocalíptica colonização de Rondônia graças aos quilombolas, que teriam barrado a entrada de fazendeiros e madeireiros, com a ajuda providencial das inundações do Rio Guaporé. Mas o próprio vereador defende um projeto de colonização. Ele alega que as 17 famílias precisariam de 44 mil hectares porque, uma vez titulado, o quilombo dificilmente continuaria “com esse pouquinho de gente”. Sua ONG está tão afinada com a verborréia extrativista que se apresenta como Ecovale. E como Ecovale foi multada pelo Ibama no ano passado em R$ 192 mil, pela captura ilegal de tartarugas.

    Essa história continuaria enterrada nos cafundós do Brasil se a repórter Andreia Fanzeres não fosse pescá-la nesta semana. Dez unidades de conservação federais andam metidas em disputas semelhantes. E nenhum brasileiro precisa ir muito longe para encontrar um quilombo nascendo, com selo oficial, praticamente na esquina de casa. Se alguma coisa está acontecendo pela-primeira-vez-na-história-deste-País ou mesmo deste planeta é que, 120 anos depois da Lei Áurea, o Brasil produz quilombolas como nunca.

    Eles estão no front das 8 mil “comunidades tradicionais” que estão atualmente na fila por um naco do território nacional. A maioria, em área verde. Todos eles têm a simpatia do Ministério do Meio Ambiente e o patrocínio incondicional do Incra. Mas os quilombolas contam, de quebra, com o Decreto nº 4.887. Ele estabelece, desde 2003, que “a caracterização dos remanescentes das comunidades dos quilombos será atestada mediante autodefinição da própria comunidade”. E resolve que, “para a medição e demarcação das terras, serão levados em consideração critérios de territorialidade indicados pelos remanescentes das comunidades dos quilombos”.

    Em outras palavras, para todos os efeitos legais, quilombola é quem se diz quilombola. E quilombo é tudo o que o quilombola acha que é seu. É por isso que, nas portas do Rio de Janeiro, a Ilha da Marambaia pode passar, depois de cem anos, da Marinha para 379 moradores. Eles ganhariam quase 70% daqueles 82 quilômetros quadrados de litoral preservado pela reserva militar. O curioso é que, dos quilombolas da Marambaia, espontaneamente, 21% se consideram “brancos”.

* É jornalista e editor do site O Eco
(Artigo publicado no jornal O Estado de S. Paulo, de 4 de julho de 2007)

Boletim Informativo nº 965, semana de 16 a 22 de julho de 2007
FAEP - Federação da Agricultura do Estado do Paraná
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