Pobre Reserva Biológica do Guaporé. Ela está na
mira de um processo para titulação dos moradores de Santo
Antônio. O povoado, dentro do refúgio natural, não
passa de 17 famílias. Ocupa 200 hectares de terra firme, numa
planície encharcada de Rondônia. Mas, pródigo como
sempre que se trata de privatizar o patrimônio público, de
preferência nas últimas fronteiras selvagens do
território brasileiro, o Incra resolveu que as 17
famílias não cabem em menos de 86 mil hectares.
É muita bondade do Incra. Oitenta e seis mil
hectares dariam para fazer quase três parques nacionais como o de
Itatiaia, que acaba de completar 70 anos e, mesmo sendo o decano das
unidades de conservação no País, espera sentado
numa pilha de conflitos históricos sua
regularização fundiária. O Ibama, depois de ouvir
os quilombolas, concluiu que bastariam 3,5 mil hectares da reserva para
os moradores de Santo Antônio viverem, como fizeram até
hoje, dos roçados de subsistência, da
criação de animais domésticos e pesca. Enfim,
José Soares Neto, ou Zeca Lula, garante que os quilombolas se
contentariam com 44 mil hectares. Ou mais ou menos a metade do que lhes
propôs o Incra. Pelo rigor dos números, se vê como a
história do quilombo está bem contada.
Zeca Lula preside a Associação
Comunitária Quilombola e Ecológica do Vale do
Guaporé. É vereador, em terceiro mandato. Reside na
cidade de Costa Marques. E argumenta que a reserva só se salvou
da apocalíptica colonização de Rondônia
graças aos quilombolas, que teriam barrado a entrada de
fazendeiros e madeireiros, com a ajuda providencial das
inundações do Rio Guaporé. Mas o próprio
vereador defende um projeto de colonização. Ele alega que
as 17 famílias precisariam de 44 mil hectares porque, uma vez
titulado, o quilombo dificilmente continuaria “com esse pouquinho
de gente”. Sua ONG está tão afinada com a
verborréia extrativista que se apresenta como Ecovale. E como
Ecovale foi multada pelo Ibama no ano passado em R$ 192 mil, pela
captura ilegal de tartarugas.
Essa história continuaria enterrada nos
cafundós do Brasil se a repórter Andreia Fanzeres
não fosse pescá-la nesta semana. Dez unidades de
conservação federais andam metidas em disputas
semelhantes. E nenhum brasileiro precisa ir muito longe para encontrar
um quilombo nascendo, com selo oficial, praticamente na esquina de
casa. Se alguma coisa está acontecendo
pela-primeira-vez-na-história-deste-País ou mesmo deste
planeta é que, 120 anos depois da Lei Áurea, o Brasil
produz quilombolas como nunca.
Eles estão no front das 8 mil
“comunidades tradicionais” que estão atualmente na
fila por um naco do território nacional. A maioria, em
área verde. Todos eles têm a simpatia do Ministério
do Meio Ambiente e o patrocínio incondicional do Incra. Mas os
quilombolas contam, de quebra, com o Decreto nº 4.887. Ele
estabelece, desde 2003, que “a caracterização dos
remanescentes das comunidades dos quilombos será atestada
mediante autodefinição da própria
comunidade”. E resolve que, “para a medição e
demarcação das terras, serão levados em
consideração critérios de territorialidade
indicados pelos remanescentes das comunidades dos quilombos”.
Em outras palavras, para todos os efeitos legais,
quilombola é quem se diz quilombola. E quilombo é tudo o
que o quilombola acha que é seu. É por isso que, nas
portas do Rio de Janeiro, a Ilha da Marambaia pode passar, depois de
cem anos, da Marinha para 379 moradores. Eles ganhariam quase 70%
daqueles 82 quilômetros quadrados de litoral preservado pela
reserva militar. O curioso é que, dos quilombolas da Marambaia,
espontaneamente, 21% se consideram “brancos”.
* É jornalista e editor do site O Eco
(Artigo publicado no jornal O Estado de S. Paulo, de 4 de julho de 2007)