“Não existiria nenhum abril
vermelho sem recursos públicos”

Estudioso de questões relacionadas a movimentos sociais e desenvolvimento rural, o sociólogo Zander Navarro está convencido de que não existe demanda por reforma agrária no Brasil, ao contrário do que tem dito o Movimento dos Sem-Terra (MST) - organização que ele descreve como antidemocrática e com “apego quase militar à manutenção de uma estrutura semi-secreta”.

    Em entrevista ao jornal “O Estado de S. Paulo”, de 29/04/2007, Zander Navarro afirma que não existe controle sobre os recursos públicos repassados às entidades controladas pelo MST, que acabam destinados ao financiamento da militância: “Não existiria nenhum ‘abril vermelho’ sem recursos públicos.” Leia abaixo alguns trechos da entrevista.




A onda de invasões do “abril vermelho”, segundo o MST, destina-se a chamar a atenção para a situação de centenas de milhares de pessoas que anseiam pela reforma agrária. Mas o senhor escreveu recentemente que não existe essa demanda. Poderia explicar?
Apenas sugeri que a demanda social está decrescendo com o tempo. Isso é uma obviedade, pois a dinâmica do trabalho no Brasil segue hoje uma lógica urbana e, além disso, os agricultores sabem que trabalhar exclusivamente na terra em pequenas parcelas não produz mais a sobrevivência da família, como no passado. Existe uma demanda mais visível apenas em algumas regiões. Em todo o centro-sul, por exemplo, é muito reduzida.

O senhor também já disse que o MST não é um movimento social, mas uma organização não democrática. Por quê?
Movimentos sociais surgem de uma situação de agravamento que ameaça um grupo de pessoas. Uma vez superada a ameaça, eles desaparecem. Normalmente tem vida curta. O MST assumiu tal feição por alguns anos, especialmente na década de 1980. Foi aos poucos se transformando em organização, no sentido formal da palavra. Mantém setores, departamentos, carreiras internas e estruturas de decisão, enfim uma burocracia. Essas características inexistem em movimentos sociais, que são muito mais flexíveis.

Em que ano localiza essa inflexão?
O MST tornou-se não democrático quando adotou, em 1986, uma estrutura centralizada e altamente hierarquizada. O apego quase militar na manutenção de uma estrutura semi-secreta, com rígido controle sobre os militantes e nenhum debate interno é a evidência de uma organização que despreza a democracia.

O MST diz que investe na emancipação política e intelectual do homem do campo. Um dos orgulhos do movimento são suas escolas, os centros de formação de professores, os currículos especiais, os convênios com universidades.
Seria preciso existir possibilidade de visitas e acompanhamento sem controle prévio às escolas dos assentamentos - o que o MST jamais permitiria, porque levaria à desmoralização dessas atividades. Há exceções, notáveis, mas na maior parte dos casos é um exercício primaríssimo de doutrinação da meninada. É um absurdo chamar de educação o que está sendo feito nos assentamentos rurais quando prevalece o tom monocórdio da cartilha única. Pedagogia sem desenvolver o pensamento crítico e sem apresentar diversas leituras sobre o mundo pode ser chamada de educação?

Muitas atividades do MST são financiadas com recursos públicos, por meio de convênios com entidades controladas para organização, como a Associação Nacional de Cooperativas Agrícolas. O senhor acha que esse dinheiro é bem empregado?
A partir dos anos 90, o financiamento do MST oriundo das doações de igrejas européias começou a escassear, ao mesmo tempo em que se descobriu a porta das burras do Estado. São dois os estratagemas. Primeiramente, mantêm sob estrutura não formal o MST - que não é registrado, não tem estatuto, não tem processos públicos de escolha de sua direção e não presta contas de nada. Isso permite proteger suas lideranças em todo o País, ocorrendo alguma ilegalidade. Algo bizarro, porque o MST vive cobrando democracia e transparência no comportamento das demais organizações políticas do País.

E o segundo estratagema?
O outro caminho é registrar dezenas de organizações, sobre as quais ninguém ouviu falar (cooperativas, associações, organizações de técnicos). Essas últimas, por serem regulares, preparam projetos para obter fundos públicos. Como o MST tem milhares de simpatizantes dentro do Estado (o que é mérito político da organização), a aprovação sempre é facilitada. Como não há fiscalização, a criatividade, digamos assim, permite um uso bastante heterodoxo dos recursos.

Inclusive o financiamento de ações como o “abril vermelho”?
Sim. Sem esses fundos não existiria nenhum “abril vermelho”. Mas existem outras formas de acesso. Por exemplo, concentrar esforços para eleger representantes no Legislativo, que depois serão marionetes da cúpula do MST. Um deputado estadual sustenta pelo menos 10 militantes em tempo integral. Um deputado federal sustenta pelo menos o triplo. Militantes colocados em cargos públicos farão o mesmo, sempre que puderem. Se não ocorressem desvios e fosse uma organização realmente democrática e aberta, por que o MST resistiria a abrir suas contas?

O senhor aponta proximidades entre governo e MST. Mas os líderes da organização e o ministro do Desenvolvimento Agrário andam trocando farpas. O MST dizendo que o governo Lula não fez nada pela reforma; e o ministro, afirmando que a organização não vê os fatos.
Tudo isso é risível. Faz parte da brincadeira os dirigentes do MST manterem o cenho cerrado e dispararem críticas desconexas, apenas para manter a imagem de autonomia da organização. Se o MST está incrustado no Estado com seus quadros, e recebendo fundos públicos, como deixar de ver como ridículas as trocas de acusações, que meramente se destinam a manipular a opinião pública?

E o governo?
Repetem-se fantasias. O atual presidente do Incra, não obstante sua competência técnica, jamais existiria como quadro partidário se não fosse a tutela do MST. As reformas agrárias redistributivas foram um grande objetivo nos anos 60 e 70, mas ninguém mais propõe tais políticas no mundo. Continuamos, contudo, com esse ideário e assentamos precariamente 1 milhão de famílias em dez anos, mas o MST insiste em que nada foi feito. É mesmo uma comédia.

No governo existem pessoas que defendem ardorosamente a reforma como caminho para a criação de empregos e redistribuição de riquezas.
Por tudo que conheço, não creio que a maior parte dos principais dirigentes do governo federal tenha qualquer preocupação com reforma agrária, que não vêem mais como necessária.

Por que insistem no assunto?
Por ser um tema que sempre fez parte da retórica ideológica do PT e adjacências. Precisam manter alguma iniciativa nesse setor porque existe pressão política residual do MST e da Contag, intelectuais que ainda têm a mente nos anos 60, algumas ONGs e os setores estudantis encantados de sempre. Além disso, é conveniente manter um ministério secundário que pode ser entregue a uma facção petista que poderia incomodar.

É um jogo de cena?
Se pudessem dizer, os principais operadores governamentais, incluindo o presidente, acabariam concordando que o tempo da reforma acabou. Não vamos nos esquecer de que na campanha eleitoral do ano passado o tema nem sequer foi mencionado.

Quem é: Zander Navarro
É professor do Departamento de Sociologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e pesquisador visitante do Instituto de Estudos sobre Desenvolvimento, na Inglaterra
Doutorou-se em sociologia na Universidade de Sussex, Inglaterra, e fez pós-doutorado no Massachusetts Institute of Technology (MIT), nos EUA
Nos anos 80, coordenou a seção gaúcha da Associação Brasileira da Reforma Agrária, aproximando-se do MST. Rompeu com a organização por discordar dos métodos, que considera não democráticos.


Boletim Informativo nº 955, semana de 7 a 13 de maio de 2007
FAEP - Federação da Agricultura do Estado do Paraná
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