NA FAMOSA frase, Hegel escreveu que “a coruja de Minerva só levanta vôo com o cair do crepúsculo”, a metáfora alertando que a sabedoria da filosofia somente interpreta a realidade após os fatos ocorridos, pois não pode prescrever como o mundo deveria ser. Três décadas depois de sua formação pela Comissão Pastoral da Terra, o MST promove mais um “abril vermelho”. Assusta uns e enfeitiça outros tantos, encantados com a mobilização supostamente voluntária dos pobres do campo. A maioria, contudo, recebe com enfado o que ocorre, pois a política não sobrevive à banalização da incessante repetição. Anos depois, a organização permanece sob relativo mistério, e muitos ainda se surpreendem de que mantenham tal ativismo. Os principais mitos precisam ser desvendados, para que a interpretação oriente-se pela história real. Aos fatos.
Reformas têm o seu tempo histórico, e a agrária surgiu nos anos 50, quando foi entendida como necessária para constituir o mercado interno que desenvolveria o país. Mas não ocorreu, pois após o “milagre brasileiro” o Brasil ressurgiu mais urbano, com sua economia prescindindo da reforma agrária. Mas não apenas isto.
No mesmo período, o mundo rural se tornou mais heterogêneo e a produção de alimentos e matérias-primas, ainda nos anos 80, encontrou-se com a demanda. Assim, reforma agrária para garantir oferta de produtos e uma política que precisasse ser uniforme em todo o país também sumiram do mapa dos argumentos.
Restaria a justificativa política, a democratização no campo, ainda uma exigência em algumas regiões, mas cada vez menos, em face da difusão de informações e do aperfeiçoamento democrático.
A conclusão inevitável é que hoje inexistem razões, sob qualquer ângulo, para a realização desta reforma em todo o Brasil. Nem mesmo existe uma demanda social digna do nome, cada vez mais raquítica. Quando muito, a reforma agrária concentrada exclusivamente no chamado “polígono das secas” ainda seria justificável, pois reduziria a incidência da pobreza rural.
Perdendo a sua razão de ser, o MST tem sido forçado a apelar para “novos temas” para se autojustificar e, desde então, são patéticas suas ações e demandas. Sempre procurando polaridades que facilitam o jogo político, a tentativa, por exemplo, de transformar o chamado “agronegócio” em alvo é apenas um desses equívocos.
Não apenas porque todos os agricultores fazem negócios, inclusive os assentados, mas porque a maioria dos brasileiros se perguntaria: podemos abrir mão desse setor produtivo? O erro estratégico é pedestre, mas os líderes dos sem-terra preferem a miopia do obscurantismo ideológico ao exame da realidade.
Se assim não fosse, o MST atacaria a agricultura de grande porte valendo-se dos fatos. Ou seja, os abusos sistemáticos realizados pela maior parte daqueles proprietários em relação aos direitos trabalhistas e, em particular, a espantosa depredação ambiental em áreas rurais, comprometendo as regiões de produção. Mas alguém, em sã consciência, poderia antever um futuro rural sem a agricultura de grande escala no Brasil? Haveria alguma chance, pequena que fosse, de atrair novamente massas de moradores urbanos para o campo, inspirando-se quem sabe na tragédia da experiência do Khmer Rouge?
Mas a comédia de erros pode se estender a perder de vista. Desde o embuste de apresentar-se como um “movimento social”, quando é uma organização não democrática do sistema político (o que permite esconder líderes, que escapam do debate), até os aspectos de sua estruturação interna, quase todos ignorados pelo público. Este desconhece, por exemplo, a verdadeira aberração que são suas iniciativas em “educação”, passando pelo controle autoritário, freqüentemente violento, sobre os assentados, em um mundo rural onde o Estado não comparece e as práticas democráticas são rarefeitas.
Por fim, o coroamento dessa seqüência de absurdos. O “abril vermelho” é ostensivamente pago com recursos públicos, sem transparência ou prestação de contas. Isso o torna mais acintoso, pois finge atacar a política federal e o Estado, quando são os recursos estatais que financiam a montagem deste tragicômico teatro.
Até quando o governo federal sustentará esse embate leviano e a irracionalidade de um programa que, sob a forma atual, não muda nada, não democratiza a propriedade rural, não atende aos pobres do campo, mantendo apenas a retórica dos jogos de cena da política e os atuais interesses dos principais atores, o MST inclusive?
*Zander Navarro é professor de sociologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e pesquisador visitante na Universidade de Sussex (Inglaterra). Autor de “Mobilização sem Emancipação - As Lutas Sociais dos Sem Terra no Brasil”, entre outros trabalhos.
(Publicado no jornal Folha de S. Paulo de 22/04/2007 no espaço Tendências/ Debates)