Toda vez que as negociações comerciais ameaçam dar um pequeno passo adiante, as carpideiras de plantão já desfiam argumentos de forte conteúdo emocional, porém sem nenhuma consistência empírica. Tal é o caso do atual momento das negociações multilaterais de Doha, no qual se busca evitar um final melancólico para a rodada, que teria conseqüências nefastas para a própria sobrevivência da Organização Mundial do Comércio (OMC).
O que está em jogo nestas negociações é uma abertura recíproca e equilibrada dos setores agrícola, industrial e de serviços no mundo. Dentro da ótica mercantilista que domina estas negociações, o Brasil é ofensivo no primeiro assunto e defensivo nos demais.
As carpideiras defendem a tese de que “proteção é fundamental para assegurar a competitividade da indústria” e que o Brasil não deveria trocar o seu brilhante futuro em “indústria e serviços” pelo passado “agrícola”. Afirmam ainda que a pauta exportadora brasileira seria dominada por commodities pouco dinâmicas e “retrógradas”, marca típica do “padrão de dependência” de países pobres da periferia pelas economias centrais, que uma maior abertura levaria a uma “desindustrialização acelerada” e outros argumentos que não resistem a dez minutos de conversa séria.
Primeiro, a definição de “agricultura” da OMC compreende tudo o que costumamos chamar de agronegócio. Cálculos do CEPEA-USP mostram claramente o enorme efeito multiplicador da matriz insumo-produto do agronegócio. O setor agropecuário estrito senso responde por 30% do agronegócio, sendo os demais 70% compostos por indústrias de máquinas e insumos agrícolas, alimentos e bebidas, fibras, agroenergia e serviços correlatos. Estudo recente do IPEA mostra que o crescimento da agricultura vem ocorrendo graças a elevados aumentos da produtividade total dos fatores (3,9% ao ano nesta década, quase o triplo do valor obtido pelos EUA), destacando-se a crescente expansão no uso de insumos industriais modernos pelo setor.
Vale também lembrar que o Brasil é o terceiro exportador mundial no agronegócio. Os nossos maiores concorrentes são países ricos - União Européia, EUA, Canadá e Austrália. As exportações do setor cresceram 19% ao ano desde 2000, puxadas pela crescente demanda asiática. Onde está o “baixo dinamismo” e o “padrão de dependência da periferia”? Além disso, de trinta anos para cá houve expressiva diversificação e agregação de valor na pauta exportadora, ainda que insuficiente ante o potencial do País.
Segundo, não são só as indústrias mais competitivas e os consumidores finais que ganham com a abertura comercial, mas também todos os setores que se beneficiariam de importações mais baratas de bens intermediários. Por exemplo, a abertura do setor de bens de capital (máquinas, equipamentos) certamente tornaria mais competitiva nossa indústria de bens de consumo final. Importar mais é fundamental para exportar mais. Não há um único exemplo de país que se tenha desenvolvido como grande potência fechando sua economia. A abertura comercial está na base do desenvolvimento dos países desenvolvidos no século XX e dos países emergentes a partir de 1990.
Felizmente, argumentos puramente emocionais hoje têm vida curta, porque há um grupo cada vez mais consistente de jovens analistas de política comercial que domina os fundamentos econômicos e jurídicos da matéria. Na área de serviços, vale destacar os esforços que vêem sendo liderados por Mario Marconini, na Fecomércio, e por Ricardo Sennes, na Consultoria Prospectiva.
Na área de bens industriais, além dos técnicos da Coalizão Empresarial Brasileira - Soraya Rosar, Pedro da Motta Veiga, Sandra Rios, Lucia Maduro -, vale destacar os trabalhos do Departamento de Relações Internacionais e Comércio Exterior da Fiesp (Derex), sob a liderança de Roberto Giannetti da Fonseca, Carlos Cavalcanti e Diego Bonomo. A Fiesp recebeu Pascal Lamy e cada um dos ministros mais importantes de Doha em longas e difíceis conversas, preparou uma centena de simulações e assinou declarações importantes com entidades empresariais de vários países defendendo uma rodada mais ambiciosa.
Na próxima semana, a entidade receberá uma delegação de 12 líderes da National Association of Manufacturers dos EUA para discutir avanços nas negociações industriais da OMC, incluindo a realização de um exercício sobre acordos setoriais que promoveriam uma abertura mais acelerada dos segmentos mais competitivos da indústria e a identificação de oportunidades bilaterais de comércio e investimento.
É verdade que há setores da CNI e da Fiesp que sempre lutarão freneticamente contra qualquer abertura econômica. Porém a Fiesp também é formada por mais de 30 sindicatos com interesses ofensivos: agronegócio, minerais, madeiras, metais, gemas, jóias e outros. Recentemente, o Derex identificou cerca de 450 linhas tarifárias industriais nas quais a indústria teria claros interesses de abertura comercial no exterior.
Particularmente, acho que o Brasil ainda não entendeu corretamente a dinâmica do processo de globalização que está em andamento no mundo. Precisamos abandonar a velha visão autárquica de defesa da auto-suficiência a qualquer preço, que acha as exportações benéficas e as importações maléficas.
Com base na análise do grau de abertura (e não na simplista comparação da tarifa nominal), a Funcex e o Ipea divulgaram estudos que mostram que a economia brasileira ainda se situa entre as mais fechadas do mundo e que o Brasil deveria integrar-se mais, reduzindo tarifas de importação, melhorando a infra-estrutura para as exportações e implementando reformas nas políticas públicas que garantam a tão desejada “isonomia competitiva” em relação aos nossos concorrentes.
Neste contexto, a melhor maneira de obter ganhos líquidos de comércio seria por meio de um acordo multilateral que promova uma abertura ampla e recíproca na OMC, e da urgente retomada das negociações regionais e bilaterais, que precisam de mais ação e menos falação.