A água é fundamental à vida. E o acesso à água potável constitui um requisito da democracia contemporânea. Tais conceitos, valiosos, foram cultuados na passagem, semana passada, do Dia Mundial da Água. Demorou. Mas, finalmente, a sociedade parece descobrir que preservar os recursos hídricos carrega o passaporte para o futuro.
Relatório recente da Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação (FAO) indica que a escassez de água atinge 1,2 bilhão de pessoas em todo o mundo. Outros 500 milhões se encontram ameaçados no curto prazo. O Brasil apresenta elevada disponibilidade de água doce. A vazão média dos rios nacionais atinge 180 mil metros cúbicos por segundo, cerca de 12% do mundo.
Mas há um problema: 74% desses recursos hídricos estão na Bacia do Amazonas. Nas regiões mais povoadas e industrializadas, a falta d’água começa a preocupar. O dilema da escassez já atinge certas bacias hidrográficas, como a do Piracicaba-Jundiaí e a do Paraíba do Sul, para não falar do Alto Tietê, que rega a metrópole paulistana.
A fartura da natureza fez as pessoas, talvez, imaginarem que a água seria um bem infinito. Vã ilusão. Pelo País afora, o desmatamento e a erosão dos solos provocou o assoreamento dos rios e reservatórios. A poluição urbana, industrial e doméstica destruiu sua qualidade. Quanta judiação. A cor cristalina dos córregos submergiu na fétida nódoa da civilização.
Guarapiranga é um espelho da tragédia ambiental que acomete as metrópoles brasileiras. Há décadas essa região paulistana de valiosos mananciais se degrada com a ocupação humana desenfreada. Seguindo o triste caminho da Represa Billings, a poluição turva as suas águas. Azar da natureza. Omissão do Estado.
Agora, juntos, governo do Estado e Prefeitura afinam a viola para enfrentar o desafio da recuperação dos mananciais metropolitanos. Não será fácil. Há 40 anos o homem destrói os recursos hídricos da região. Chegou, porém, a hora de reagir, invertendo a equação histórica. Moradia digna precisa casar com ecologia.
Na agenda da proteção dos recursos hídricos, País afora, cabe tarefa a todos. A começar da medida básica: o combate ao desperdício. A receita contra o consumo perdulário de água contém educação, boa consciência e uma pitada de repressão. É impossível que as calçadas continuem a ser lavadas livremente, como se fosse normal derriçar água fora. Atenção, senhoras donas de casa: uma mangueira aberta gasta 280 litros em apenas 15 minutos de “varrição”. No passado, podia ser suportável. Hoje, é inadmissível.
Grande contribuição deve vir da construção civil. O reúso da água em condomínios e plantas industriais ainda engatinha. A captação das chuvas nas residências parece poesia de ecologista. Válvulas hidráulicas, com pressão sempre desregulada, tornam as descargas sanitárias uma afronta à natureza. Chuveiros elétricos são verdadeiros criminosos ambientais.
Durante o triste apagão elétrico de 2001, quando a economia de água significava enfrentar a escuridão, descobriu-se que as pessoas são sensíveis ao chamamento da responsabilidade. Houve resposta ao apelo governamental. Nada melhor que a conscientização popular.
Reduzir o desperdício de água é fundamental. Mas, na ponta inversa da equação, onde nasce a água, mora outro grande perigo. Há também que proteger a “fábrica de água”. Senão, um dia, a mina seca.
O trabalho deve começar pela recuperação das matas ciliares, formando um cordão verde ao longo dos riachos. A lei exige 30 metros de largura. Nas nascentes, o aro vegetado é de 50 metros. Quanto erro se cometeu no passado, desmatando a esmo, deixando peladas as beiras dos córregos. Inadvertidamente, procurando terra fértil, agricultores cultivaram até próximo da linha d’água. Vieram as enchentes, criando enormes barrancos.
Ensina a economia que a escassez define o preço de um bem. É inevitável, e desejável, a cobrança pelo uso da água. A economia ajuda a ecologia. Dar preço ao consumo vai melhorar a gestão dos recursos hídricos. Afinal, ninguém valoriza aquilo que nada vale. Quando dói no bolso, muda o negócio.
Quem pagaria pela cobrança da água? Os tomadores do precioso líquido: empresas de saneamento, indústrias e irrigantes. Hoje, no abastecimento humano se paga, apenas, pelo serviço de tratamento da água. Na irrigação, atividade gastadora de água, sistemas modernos de gotejamento devem substituir os perdulários aspersores.
A taxa pelo uso da água, assim diz a legislação, deve ser revertida na proteção hídrica da própria bacia hidrográfica. O dinheiro arrecadado não engorda o caixa do governo, mas, sim, fica no local. Isso é bom.
Cresce a proposta de se utilizar parte dos recursos da cobrança na remuneração dos “produtores de água”. Surge novo conceito, que abarca os proprietários rurais conservacionistas, aqueles que preservam a natureza e protegem os mananciais em seu território. O tema é fundamental.
Trata-se de uma recompensa aos agricultores que, abdicando do uso intensivo da terra, prestam relevante serviço ambiental à sociedade. Parece utopia. Mas tal sistema funciona na cidade de Nova York. Lá, bebe-se água limpa sem tratamento químico. Os gringos pagam pela proteção das nascentes. E sai muito mais barato.
O pagamento por serviços ambientais empresta sinal positivo à política ambiental. O meio ambiente é conhecido por sempre dizer não. Dar vantagem econômica aos conservacionistas, porém, significa um belo sim. Um prêmio aos amigos da água.
Xico Graziano, agrônomo, é secretário do Meio Ambiente do Estado de São Paulo. e-mail: xico@xicograziano.com.br