Tamanho não é documento *Xico Graziano |
Nunca se assentou tanta família em tão pouco tempo. A briosa frase, proferida recentemente pelo ministro do Desenvolvimento Agrário, comprova uma ousadia. Simultaneamente, expõe uma temeridade. A reforma agrária brasileira bate recordes de quantidade. Sua qualidade, todavia, é sofrível. Segundo os dados oficiais, entre 2003 e 2006, foram realizados 381.419 assentamentos. Apenas em 2006, ano eleitoral, 136 mil famílias receberam terra. Orgulha-se o ministro: ‘Trata-se do maior número de assentamentos feito num só ano, desde que o Incra foi criado, 36 anos atrás.’ Pimba. Somando-se os três últimos governos, dois de Fernando Henrique e um de Lula, 912 mil famílias tiveram acesso à reforma agrária. Considerando o período Sarney, Collor e Itamar Franco, pode-se afirmar que 1 milhão de famílias se tornou ‘com-terra’ desde a redemocratização do País. Uma enormidade. Para comparação, sabe-se existir em São Paulo cerca de 250 mil agricultores. Quer dizer, a reforma agrária já ultrapassou em quatro vezes a agricultura paulista. Em todo o Brasil, somam-se perto de 5 milhões de estabelecimentos rurais. Assim, os assentamentos representam 20% de acréscimo nos produtores nacionais. Pode-se também aquilatar o tamanho da reforma agrária pela área distribuída. Os dados indicam que a reforma atingiu 51,4 milhões de hectares nos últimos 12 anos. Desde a Nova República, a área assentada alcança 60 milhões de hectares. Uma imensidão. São Paulo cultiva 6,5 milhões de hectares. A safra nacional, neste ano, está plantada em 45,5 milhões de hectares. Somando-se os cultivos permanentes, toda a área explorada chega a 62 milhões de hectares. Basta confrontar os números. A descoberta é surpreendente. A reforma agrária já tem o mesmo tamanho da agricultura tradicionalmente realizada no País. Na área agrícola, os sem-terra já empatam com os com-terra. E ainda tem gente, incrédula, pensando que a reforma agrária não anda. Pergunta-se: qual a produção agrícola dos assentamentos rurais? Quanto contribuem para a safra nacional? Pasmem, ninguém sabe. Parece mentira, mas nunca se aquilatou o resultado produtivo da distribuição de terras. Bê-á-bá em economia, a relação custo-benefício jamais foi calculada. As despesas do processo, apenas na última década, devem atingir R$ 50 bilhões. Também aqui, a conta é incerta. Nunca o Incra calculou, pra valer, o custo total dos assentamentos, incluindo a desapropriação, a implantação e os subsídios no financiamento. Transparência, zero. Sabe-se, é verdade, que existem assentamentos exemplares. São, infelizmente, absolutas exceções. Um chamado ‘censo da reforma agrária’ se realizou há cinco anos. Os indicadores eram preocupantes. Má qualidade de vida se juntava à insuficiência da produção rural, com renda média baixíssima. A desistência sempre foi muito elevada, na média, da ordem de 40%. Troca-se de lote como se compra carro velho. No governo Lula, aumentou o problema. Milhares de famílias são assentadas sem nenhuma atenção ao planejamento nem compromisso com a eficácia. Desapropriar continua a ser a ordem do dia. Mais e mais terra é invadida, distribuída, sem melhorar a riqueza no campo. Ao contrário, eleva-se a pobreza, ou melhor, a espalha. Não é estranho, aos estudiosos da reforma agrária, o efeito paradoxal do distributivismo no campo. Realizada sem planejamento, a desagregação da economia agrária troca investimentos por custeio pessoal, fazendo recuar o nível de produção. Aconteceu no Peru. A reforma agrária do esquerdista general Alvarado, no final dos anos 60, picotou a terra e elevou a miséria no campo. Quem visita Cuzco enxerga nos mosaicos da paisagem esse drama fundiário. Resquício do passado, quando o latifúndio representava o mal, a vendeta atual contra a grande propriedade produtiva provoca queda na produção agropecuária. Assim aconteceu na Fazenda Teijin, em Nova Andradina (MS). Local de terras fracas, arenosas, a empresa japonesa desenvolvia, após alguns fracassos iniciais, uma pecuária tecnicamente adequada às condições do frágil ecossistema. Não resistiu à ânsia agrarista. Na desapropriação da área, os próprios agrônomos do Incra desaconselharam o assentamento, em face da limitação de fertilidade. A área não servia ao cultivo. Está lá, no processo. Nada adiantou o alerta. Num modelo em que importa a quantidade, seus 28 mil hectares engrossaram as estatísticas do governo. Sumiu a produção. Agora, o MST levou sua sanha até Roraima. A Fazenda Bamerindus, próxima de Boa Vista, já dançou. Antigos projetos de colonização, cobertos por floresta virgem, igualmente sucumbem à motosserra. Na Amazônia, grileiros e invasores, ricos e pobres se aliam para destruir a biodiversidade. O recorde da reforma agrária brasileira, comemorado pelo governo, poderá, logo, entrar, sim, para o livro do Guinness. Não pelo tamanho. Será conhecido como o maior fracasso, mundial, de um programa público. Dez na quantidade, zero na qualidade. A palavra-chave se chama aptidão. Enquanto a invasão de terra, com gente desqualificada, continuar passaporte para um lote, jamais o processo dará certo. Aqui está a virtude, na competência, não na grandeza. O IBGE promete incluir agora, no Censo Agropecuário, o levantamento dos assentamentos rurais. Finalmente, a sociedade poderá conhecer, objetivamente, a magnitude de sua reforma agrária. Vai se espantar com o esqueleto atrás do armário. *Xico
Graziano, agrônomo, foi presidente do Incra (1995) |
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Boletim Informativo nº 946,
semana 19 a 25 de fevereiro de 2007 |
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