A Polícia Federal prendeu, dias atrás, um grupo de sem-terra que devastava a reserva florestal de São Simão, no norte paulista. Na seqüência da ação pública, a Polícia Ambiental destruiu 89 fornos de carvão que funcionavam, pasmem, dentro do precário assentamento rural. Bandidagem pura.
Vem de longe essa triste relação entre a reforma agrária e a ecologia. Dentro do Incra, desde 1987 o professor Jacó Anderle, então superintendente em Santa Catarina, denunciava o avanço das invasões sobre remanescentes da mata atlântica. Cobertas por araucárias, tais florestas virgens eram catalogadas como áreas ociosas.
Inúmeras desapropriações para reforma agrária têm sido apontadas, há anos, como agressivas à biodiversidade. No litoral sul da Bahia, assentamentos rurais se estabelecem sobre valiosas dunas de areia, estendendo-se até a praia. No Nordeste, ecossistemas frágeis, de baixa produtividade natural, foram aniquilados, como se observa em Touros (RN). Ali, na antiga Fazenda Zabelê, na zona litorânea, os assentados do projeto Quilombo dos Palmares destruíram a vegetação natural. Tomaram enorme seca, de castigo.
No Paraná, escandaloso exemplo chega da Fazenda Araupel, no município de Rio Bonito do Iguaçu. A maior extensão particular de mata atlântica da Região Sul, com 53 mil hectares, acabou invadida e desapropriada em nome da pobreza rural. O Incra, acuado, prometeu realizar um assentamento ecológico. Conversa fiada.
O impacto da política fundiária sobre o patrimônio florestal causou polêmica, anos atrás, na esquerda petista. Em dezembro de 1977, o então deputado federal Gilney Vianna apresentou um relatório à comissão que investigava a ação das madeireiras asiáticas na Amazônia. Nele se indicava que 15 milhões de hectares de florestas estavam ameaçados, irremediavelmente, pelos projetos de reforma agrária. Foi um qüiproquó danado.
O núcleo agrário do PT reagiu, procurando desmoralizar o relatório. Mas não havia como tapar o sol com a peneira. Marina Silva, senadora na época, defensora do extrativismo sustentável, bradou contra o stalinismo agrarista do seu partido. No final do episódio, baixou o silêncio. Todos se aquietaram, como se o assunto ferisse um dogma. Até a imprensa se calou, perdida entre a boa causa, da reforma agrária, e a rapina ambiental, inaceitável.
No passado, quando ainda ninguém falava de ecologia, as terras cobertas por florestas nativas eram tachadas como “improdutivas”. Fazia sentido. O crescimento da economia, trazendo a urbanização, exigia maior produção rural. Regiões inteiras foram desbravadas em nome do desenvolvimento. Em face dos dilemas daquela sociedade, o desmatamento parecia aceitável.
Os antigos latifúndios, verdadeiro sistema de produção, baseado na grande propriedade e, quanto ao trabalho, no servilismo pessoal, passaram a ser sinônimo de terra ociosa. Após 1964, com o Estatuto da Terra, a ordem era sua desapropriação, para fins de reforma agrária. A floresta cedia lugar ao progresso social.
Quanto equívoco se cometeu a partir desse erro conceitual. Até hoje, entre os agraristas, floresta virgem é sinônimo de área ociosa. Considerada terra de ninguém, acaba invadida pelos movimentos ditos sociais, cuja sensibilidade ambiental está próxima do zero. A motosserra zune em nome da miséria.
Quem devasta mais a natureza, o pobre ou o rico? A pergunta intriga. Na afronta à biodiversidade, tudo se mistura. Madeireiras, grileiros famosos, posseiros, grandes agricultores, invasores, fiscais corruptos, a construção civil paulista, importadores, todos se juntam para, desgraçadamente, derrubar a Hiléia. Rondônia quase já se acabou. Mato Grosso arde sua seiva. Pará chora seu mogno.
Certa ideologia marxista-católica criou, nessa matéria, um paradigma em que a grande propriedade rural ocupa o papel de vilã, causadora de todo o mal no campo. Em contraposição, cabe ao pequeno agricultor virar santo protetor. Infelizmente, porém, na dura realidade dos fatos, mocinhos e bandidos sempre se misturaram no comportamento irracional contra a natureza. A questão é cultural.
É verdade que a pobreza não é boa aliada da ecologia. Metrópoles que o digam. Falta de saneamento básico e moradia precária não estimulam nenhuma consciência ecológica. Ao contrário. O poder público, há décadas, aceita e se torna cúmplice da ameaça à região dos mananciais de São Paulo. Desde os anos 1970, cerca de 1,5 milhão de famílias avança sobre as delicadas áreas, produtoras de água. Barracos se constroem sobre a Guarapiranga, ou a Billings, despejando toneladas de detritos sobre as represas. O crime ambiental é acobertado pela miséria degradante.
A diferença entre os falsos sem-terra que invadem a floresta para cortar sua madeira e os moradores da zona dos mananciais reside na sua consciência. Aqueles sabem do abuso que cometem, embora se escondam sob o manto da reforma agrária. Disfarçados de pobres coitados, roubam a natureza sem nenhum escrúpulo. Já os segundos comprometem o futuro sem perceber o mal que causam.
Para enfrentar ambos os problemas a civilidade exige uma mistura de repressão com educação. Somente esta, entre poderosos ou humildes, no campo e na cidade, será capaz de despertar nova consciência ecológica. A pior desgraça, todavia, que perpetua as agressões ambientais, é a impunidade.
A prisão, exemplar, dos pilantras sem-terra de São Simão indica o caminho correto. Já estava na hora.
Xico Graziano, agrônomo, secretário do Meio Ambiente do Estado de São Paulo.
(O texto, de 16 de janeiro, está disponível no site do autor: www.xicograziano.com.br)