Revista Exame: Governo quer
tomar terras dos produtores

A proposta de reajuste dos índices de produtividade mínima para as propriedades rurais está na mesa do presidente Luiz Inácio Lula da Silva e, se aprovada, pode abrir caminho para um programa de confisco de terras no País. Por causa do ano eleitoral, o presidente decidiu adiar a decisão para 2007. Mas o que vem depois, ninguém sabe. A maneira absurda como setores do Governo querem tratar o agronegócio foi tema de uma extensa reportagem na edição 872 da Revista Exame. O Boletim Informativo reproduz a íntegra da matéria, que ajuda a esclarecer o que está em jogo: manter o país na vanguarda do agronegócio ou transformá-lo num favelão rural.

O Governo quer tomar as terras deles

Não bastasse ter de enfrentar uma das piores crises que já assolaram o campo brasileiro, os produtores rurais acabam de receber uma notícia que caiu como uma verdadeira bomba. Meio na surdina, setores do governo planejam uma abrupta alteração nos rumos da reforma agrária no país e ameaçam de desapropriação uma enorme parcela dos fazendeiros. Pela idéia em debate, cada grande produtor será obrigado a atingir um índice mínimo de produtividade — quem ficar abaixo dele num único ano corre o risco de perder a terra. Por si mesma, tal notícia já é suficiente para tirar o sono de milhares de proprietários. O mais grave, porém, é que as

versões que circulam em Brasília apontam que essa exigência de produtividade poderá ser draconiana. O medo é que os produtores, abalados pela crise, simplesmente não tenham condições de cumprir as exigências. Embora ainda não se conheçam os detalhes, algumas estimativas mostram o fantástico potencial de problemas da medida. No caso da soja e do milho, o consultor André Pessoa, da Agroconsult, empresa especializada em agronegócio, estima que até 58% das lavouras fiquem abaixo da nota de corte. Nos estados mais afetados pela seca, como o Rio Grande do Sul, é provável que haja atualmente um número muito reduzido de produtores em condições de produzir com a eficiência exigida nas versões originais do projeto. "O clima no campo é de apreensão", diz Luiz Antônio Pinazza, diretor da Associação Brasileira de Agribusiness (Abag).



   A discussão sobre o índice de produtividade foi um dos fatores que motivaram há duas semanas a saída do governo de Roberto Rodrigues, que ocupava o Ministério da Agricultura desde a posse do presidente Lula, em 2003. Em Brasília, Rodrigues era o principal opositor da medida. Uma de suas críticas ao índice era a de que ele fora feito com base num trabalho do Ministério do Desenvolvimento Agrário e do Incra, que calcularam os indicadores de produtividade de cada cultura pela produção registrada entre 1999 e 2003 — período em que o agronegócio nacional bateu seguidos recordes. Com a crise atual, naturalmente, os produtores têm

menos recursos para aplicar em insumos, como defensivos e fertilizantes. É por isso que todos os especialistas já vinham trabalhando com a perspectiva de queda na produtividade do setor. Portanto, o momento não poderia ser pior para cobrar dos fazendeiros que cumpram as exigências em termos de produção. "Além de fixar um teto alto, o governo não leva em conta as características cíclicas do setor", afirma Pessoa. "É natural que a produtividade seja maior nos anos positivos e caia nos de dificuldades."


   A saída de Rodrigues representou a queda de um dos últimos defensores do agronegócio dentro do governo Lula. O anúncio do nome de seu substituto deixou o setor para lá de ressabiado. Quem assumiu o cargo foi o antigo secretário executivo do ministério, Luís Carlos Guedes Pinto. Embora fizesse parte da equipe de Rodrigues, Guedes tem ligações históricas com os movimentos de reforma agrária. Em razão disso, os produtores acham que ele tende a ser simpático à idéia de facilitar a desapropriação de novas terras. Na cerimônia de posse, o novo ministro utilizou um discurso conciliatório, dizendo


que o tema ainda não está fechado. Presente na ocasião, o presidente Lula também fez questão de apaziguar os ânimos. "Nada será feito por agora", afirmou ele, num sinal de que a medida não será implementada antes das eleições de outubro. O que vem depois ninguém sabe.

Independentemente do desfecho do caso, o episódio já abriu uma nova crise entre os agricultores e o governo. O presidente da Sociedade Rural Brasileira, João de Almeida Sampaio, diz que o setor fará campanha aberta contra a administração petista caso a nova política seja implementada. Alguns produtores falam até em adotar uma espécie de política de "desespero", investindo o que puderem nas culturas, mesmo que isso resulte em mais prejuízo, apenas para atingir o índice de produtividade a ser exigido pelo governo. "Pior do que perder dinheiro numa safra é perder a terra", afirma Nelson Paludo, agricultor do interior do Paraná, um dos produtores que estariam hoje ameaçados de desapropriação (veja quadros).



   O fato de haver produtores dizendo que vão jogar dinheiro fora para manter suas propriedades não é o aspecto mais surreal de toda essa discussão. Há outros absurdos na histó
ria. Em primeiro lugar, o governo não tem condições de saber qual será o impacto da medida, pois não realiza desde 1996 um censo agropecuário no Brasil. Ou seja, ninguém sabe dizer se a mudança das regras liberará 100 ou 1 milhão de hectares passíveis de desapropriação. Além disso, o empenho do governo dá a impressão de que estão faltando terras no país para ser distribuídas — daí a necessidade de avançar sobre quem produz e gera riquezas. É um raciocínio

incorreto. Hoje existem mais de 90 milhões de terras agricultáveis ociosas no Brasil (veja quadro abaixo). Como elas se localizam longe dos grandes centros urbanos, são propriedades desprezadas pelo MST e por outros movimentos do gênero. "Aumentar o estoque de terras para reforma agrária não é o principal objetivo da medida", afirma Guilherme Cassel, ministro do Desenvolvimento Agrário. "Queremos melhorar a performance no campo. A situação atual premia a improdutividade e impede o andamento das reformas."


   As palavras de Cassel sugerem que haja no Brasil um número considerável de especuladores de terra, sem interesse em investir seriamente na agricultura. Ocorre exatamente o contrário. Se há um setor eficiente na economia brasileira é o agronegócio. Ele é responsável por 34% do produto interno bruto (PIB), 37% dos empregos gerados e 93% do saldo da balança comercial. Além do mais, trata-se de um dos setores mais produtivos do país — graças a investimentos em tecnologia implementados ao longo de décadas. Desde 1991, o país foi capaz de dobrar a produção agrícola, apesar de a área plantada


quase não ter crescido. Em vez de investir em fatores que possam turbinar ainda mais o trabalho de quem já produz, como novas pesquisas e linhas de financiamento, o governo planeja tomar as terras para entregá-las à turma dos assentamentos agrários, que já provou ser capaz de tudo, menos de produzir com eficiência.

O interesse do governo em fixar um índice mínimo de produtividade traz também outras questões importantes a ser discutidas envolvendo o conceito de direito de propriedade. Um exemplo: punir a ineficiência de um produtor com a perda de suas terras é algo justo? Mal comparando, seria o mesmo que uma lei permitir a desapropriação de uma montadora de veículos que, por alguma circunstância, opera apenas em dois turnos - e não nos três de sua capacidade total. Em todos os demais setores da economia, fica a cargo do mercado definir quem são os produtores que merecem permanecer em operação - e quais serão deslocados. Ou seja, numa economia de mercado é normal que os mais competentes prevaleçam. No caso do universo do campo, a noção que abre espaço para que se rasgue o direito de propriedade é a chamada "função social da terra", conforme fixa o artigo 184 da Constituição Federal. Na visão maniqueísta dos congressistas que escreveram a Carta de 1988, só o fato de alguém ter uma grande propriedade já o coloca do lado dos vilões. A realidade é outra. "O modelo distributivista de terras, que o governo atual insiste em adotar, não deu certo em lugar algum do mundo", afirma Xico Graziano, deputado federal do PSDB e ex-presidente do Incra. "Para ser eficiente, a atividade agrícola exige hoje muitos investimentos e uma grande infra-estrutura, condições difíceis de ser preenchidas nos assentamentos. Por isso, muitos deles viram, em geral, favelas rurais."

Cabe aqui, portanto, uma questão fundamental: quem está cumprindo melhor sua função social, os produtores que respondem por um terço do PIB brasileiro ou os ineficientes assentamentos rurais? Os fatos mostram que a resposta é bastante óbvia. Mais do que isso, o resultado da discussão sobre o índice de produtividade pode definir a vocação brasileira nos assuntos do campo de uma vez por todas. Em última instância, está em jogo se o país vai continuar na vanguarda do agronegócio — com fazendas eficientes e capazes de gerar milhões de empregos diretos e indiretos — ou se vai jogar fora essas conquistas e, em troca, transformar o país num imenso favelão rural.


Boletim Informativo nº 921, semana de 24 a 30 de julho de 2006
FAEP - Federação da Agricultura do Estado do Paraná

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