Espaço aberto

Fábrica de índios

Xico Graziano

A Constituição brasileira determina que pertencem aos índios as terras tradicionalmente por eles ocupadas. O assunto é incontestável. Quando, porém, se manipula a causa indígena, surge a encrenca. Conflitos pipocam País afora.

O direito originário envolve as áreas habitadas e as utilizadas para as atividades, produtivas ou culturais, imprescindíveis à preservação dos povos indígenas. Assim, cabe ao Estado proteger os índios, tutelando-os. Começa pela demarcação das suas áreas. As reservas da Fundação Nacional do Índio (Funai) apontam 315 registros, somando 73,8 milhões de hectares. Para comparação, toda a área cultivada do País soma 62 milhões de hectares.

Há quem considere o patrimônio indígena exagerado. Considerando a existência de 300 mil índios, resulta numa área média de 246 hectares, incluindo as crianças. Um bom sítio. Essa média se eleva nas reservas mais distantes, como a do Xingu. Lá, a área média é de 560 hectares.

Pouco importa, porém, essa conta. As reservas são coletivas e, além da função precípua de permitir o modo de vida primitivo, assegura a preservação florestal. Ajuda a biodiversidade e protege o futuro. Decididamente, a grandeza das reservas indígenas configura questão menor.

O que pertence, de fato, aos índios está fora do debate. Moradia permanente, florestas de coleta, áreas culturalmente sagradas, o que for. Por isso são inaceitáveis as invasões das reservas indígenas por madeireiros, mineradoras, garimpeiros, fazendeiros, posseiros. Configuram crime contra a humanidade.

Até aqui, tudo politicamente correto. Agora começa a ousadia. Ocorre que a rapina histórica promovida pelos brancos paga seu preço num processo oposto. Áreas exploradas por agricultores há quase um século caem na mira do governo, que as reclama para reserva, como se fossem terras indígenas. Perícias fajutas alimentam uma verdadeira fábrica de índios montada pela Funai.

Dois casos repercutiram fortemente na opinião pública. Primeiro, o da homologação da reserva Raposa Serra do Sol, em Roraima. Segundo, a invasão de fazendas em Mato Grosso do Sul. Em ambos se percebe forte viés ideológico, induzindo a população a apoiar os "pobres espoliados" contra os "ricos usurpadores".

Situações semelhantes se espalham. Na Amazônia, 80 comunidades extrativistas, formadas por seringueiros caboclos, reivindicam reconhecimento étnico junto à Funai. Em Maringá, no Paraná, um único suposto descendente indígena reclama 5 mil hectares de terra roxa. Coisa maluca.

A falsidade mais evidente se verifica hoje no Pantanal mato-grossense. Ali, na região conhecida como Pirigara, desenrola-se um inusitado processo de regularização de pretensas terras indígenas. Tudo começou na década de 1980, quando um suposto pajé, chamado Domingos, deixou sua aldeia bororó.

Acolhido na Fazenda São Benedito, 30 km acima, no Rio São Lourenço, casou-se com uma agregada e passou a viver no local conhecido como Baía dos Guatós. Naquele braço de Pantanal, várias fazendas se haviam originado de um título concedido pelo Estado em 1895. Os últimos relatos de indígenas no local datam de 1718. Três séculos atrás.

Entretanto, em 2000, a Funai iniciou o cadastramento de moradores, a começar pelo sr. Domingos, supondo-os descendentes dos índios guatós. Acontece que essa etnia se origina distante, na região do Caracará, junto à fronteira da Bolívia. Nunca saíram de lá.

Não fez diferença. Transmutados em indígenas, antigos peões de fazenda e agregados em geral, 220 pessoas, passaram à proteção do Estado, recebendo assistência médica, rádios, gasolina, transporte aéreo, e assim por diante. Sem verbas para nada, quem financia a tramóia são ONGs estrangeiras. Aumentou a confusão.

O argumento central da Funai reside na existência de um suposto aterro, erigido pelos índios guatós, localizado na margem esquerda do Rio Cuiabá. Os registros, porém, comprovam que o "Aterradinho do Bananal", conforme é denominado, serviu como base de apoio de viajantes e pescadores. Guató, mesmo, naquelas paradas, somente se encontra no nome da curva do rio. A nomenclatura serviu à ignomínia.

A Justiça foi acionada por cinco proprietários, que detêm 36 mil hectares naquela região pantaneira. Parece muito, mas os pastos das fazendas estão alagados na maior parte do ano. Considerado paraíso ecológico, suas matas guardam o maior refúgio das raras araras azuis. A maravilha ecológica periga sucumbir.

Em Roraima, a briga pela homologação contínua da reserva incluiu na terra indígena a cidade de Uiramutã, com 150 mil hectares cultivados com arroz. Ficou estranho. Em Mato Grosso do Sul, atraídos pela promessa de reconstrução da antiga nação Yvy Katu, guaranis despencam de ônibus vindos do Paraguai. Muito esquisito.

Apontar essa trama cutuca um tabu. Mas presta um serviço à Nação. A causa indígena está extrapolando seus limites. Levado ao extremo, o raciocínio atual da Funai comprovará que todas as terras, agrícolas ou urbanas, devem ser devolvidas aos índios, pois, afinal, lhes pertenceram um dia. Antes do Descobrimento.

Exagerar é uma forma de mentir, dizia Baltazar Gracián. Os índios e sua cultura merecem proteção, disso ninguém discorda. Mas inventar índios soa disparate. Os ideólogos dessa empreita enganam a opinião pública. O culto primitivista ajuda a expiar a culpa de gente rica e alienada. Mas afronta a inteligência e agride o bom senso.

Xico Graziano, agrônomo, foi presidente do Incra (1995) e
secretário da Agricultura do Estado de São Paulo (1996-98)
(Artigo extraído do jornal O Estado de S. Paulo, de 22 de novembro de 2005)


Boletim Informativo nº 891, semana de 28 de novembro a 4 dezembro de 2005
FAEP - Federação da Agricultura do Estado do Paraná

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