Lula erra no boi
e na vaca

Carlos Alberto Sardenberg*

O presidente Lula disse que o fazendeiro é o principal responsável pela saúde do seu rebanho. Parece óbvio, não é mesmo? É o olho do dono que engorda o boi. E, justamente por ser óbvio, não serve para nada. A questão de que o presidente se deveria ocupar é a seguinte: o produtor está fazendo sua parte? E a resposta é sim para os fazendeiros do moderno e competitivo agronegócio. Não para pequenos e médios produtores, inclusive dos assentamentos de reforma agrária, o pessoal da informalidade, para não falar clandestinidade.

O que leva ao outro lado dessa história de controle sanitário do rebanho bovino: o governo está fazendo sua parte? A resposta é não.

De novo o presidente se engana. Disse ele que não faltou dinheiro. Faltou, sim. Como informou o ministro da Agricultura, Roberto Rodrigues, o orçamento para defesa sanitária, inicialmente de R$ 161 milhões, foi cortado. A liberação do dinheiro até hoje – cerca de R$ 50 milhões – equivale a um terço do originalmente orçado e à metade do que sobrou após o contingenciamento.

Além disso, faltam fiscais, faltam sistemas mais modernos de controle do gado, falta polícia. O governo federal, por lei, é responsável pela fiscalização sanitária da carne destinada à exportação, pelo comércio interestadual, via Sistema de Inspeção Federal (SIF), e pela vigilância de fronteiras.

E faz tempo que o moderno setor privado vem reclamando do governo. Tanto reclama que muita gente já se perguntou: ora, por que os produtores não resolvem o assunto eles mesmos, sem depender do governo?

É o que eles (produtores e frigoríficos) mais desejariam. Mesmo porque têm dinheiro e condições técnicas para isso.

Mas não pode. A regra internacional, que faz todo o sentido, diz que fazendeiro e exportador não podem fiscalizar e atestar a qualidade sanitária de seu próprio produto. Isso obrigatoriamente tem de ser feito pelos técnicos do governo – e aí começa a encrenca.

É falta de prioridade política, pois não se exige tanto dinheiro assim. Se o governo Lula dedicasse à defesa sanitária uma pequena parcela da energia e do dinheiro que gasta com o MST, já seria suficiente.

Tudo considerado, o governo Lula tem apanhado carona na eficiência autônoma do agronegócio quando celebra as exportações brasileiras. Mas não confere prioridade ao setor, que se mantém, assim, sob permanente ameaça.

O Brasil hoje é o maior exportador mundial de carne bovina, com 24% do mercado, pouco à frente da Austrália (21%). Do total da carne exportada, 80% segue in natura (congelada), tudo sob estrita vigilância dos compradores, que estão em mais de cem países. Enorme eficiência, que gera mais de US$ 8 bilhões por ano.

Ao mesmo tempo, há um contraste desolador. Nada menos que 50% da carne comercializada no Brasil é de abate clandestino. Ali mesmo em Eldorado, em Mato Grosso do Sul, onde apareceu o primeiro foco de febre aftosa, há gado que vem do Paraguai sem nenhum controle e há muita criação, digamos, informal, inclusive de assentamentos de reforma agrária. Pelas primeiras informações, o foco surgiu numa fazenda técnica, que tinha suas cabeças de gado vacinadas e controladas.

Confirmando-se isso, a contaminação desse rebanho terá ocorrido via mercado clandestino – e que escapou à fiscalização do governo, aqui já incluindo o federal e o estadual. Portanto, pelo que se sabe até agora, ocorreu o contrário do que sugeriu o primeiro comentário do presidente Lula sobre o assunto. Os donos fizeram sua parte, o setor público fracassou.

Esse resumo se aplica ao País todo, como, aliás, as lideranças do agronegócio – incluindo o ministro Roberto Rodrigues – vêm reclamando há muito tempo.

O diagnóstico vale para todo o complexo carne: eficiência privada, problemas no setor público. No caso da carne bovina, toda análise do setor aponta como vantagens o clima favorável e a grande disponibilidade de terras que permite a criação extensiva, com o boi no pasto consumindo capim, o boi verde, livre, por exemplo, do mal da vaca louca. Em cima disso, a capacidade dos executivos do moderno agronegócio de aproveitar essas vantagens.

Os riscos do setor? Defesa sanitária e fiscalização, a parte do governo, é o que apontam os analistas.

Lula atirou no fazendeiro, acertou no seu governo. Errou no boi e na vaca.

* Carlos Alberto Sardenberg é jornalista.
(Publicado no jornal O Estado de S. Paulo, de 17 de outubro de 2005)


Boletim Informativo nº 886, semana de 14 a 30 de outubro de 2005
FAEP - Federação da Agricultura do Estado do Paraná

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