Artigo

Ecologismo primitivo

"No Paraná, pombas silvestres estão ameaçando lavouras,
ingerindo as sementes plantadas, sem que os agricultores,
vigiados pelo Ibama, possam livrar-se delas.
Apenas tiro de rojão é permitido para espantar a passarada"

Atribui-se a Bismarck (primeiro-ministro alemão do Século 19. N. E.) uma frase famosa: “Se o povo soubesse como são feitas as leis e as salsichas, não dormiria tranqüilo”. Outro ditado, popular, afirma: “O ótimo é inimigo do bom.” Ambos podem ser evocados para analisar o recém-aprovado Código de Proteção aos Animais, em São Paulo. Sobre matéria relevante, a Assembléia Legislativa gerou uma lei inusitada. O projeto de lei havia sido aprovado em plenário e encaminhado ao Executivo. Este, analisando sua inconstitucionalidade e impertinência, o vetou na íntegra. Retornando ao Legislativo, o veto do governador acabou derrubado por acordo de lideranças, inclusive a do governo. Ninguém sabe explicar direito como foi que aconteceu.

Afinal, o que diz o código? Estabelece normas para proteção, defesa e preservação dos animais. A causa é boa. Afinal, a ecologia se afirma como valor humanitário e os animais estão a merecer crescente respeito. Maltratar a natureza é crime.

O carinho pelos bichos avança na jurisprudência. Há dias, certo promotor solicitou “habeas corpus” para a soltura da chimpanzé Suíça, enjaulada no zoológico de Salvador. Triste, a macaca morreu antes de “conhecer” a decisão judicial. Sorte do magistrado.

Esse assunto do bem-estar animal está ficando complexo. Na Noruega, a partir de 2006, todas as 235 mil vacas leiteiras terão direito a se deitar em colchões macios. Mais bem acomodadas, espera-se que aumentem a produção leiteira. Tomara que os pecuaristas durmam melhor que suas vacas.

A legislação paulista inova para além do imaginável. Vejam alguns quesitos:

1) Cria a categoria de animais “filantrópicos”, distinta dos domésticos, formado por aqueles bichos que aproveitam as condições oferecidas pelas atividades humanas para se estabelecerem em habitats urbanos ou rurais. Na zoologia, essa pretensão engloba ratos, baratas, cupins, peçonhas.

2) Veda manter animais, qualquer um deles, em local sem asseio ou privado de ar e luminosidade. Quer dizer, doravante há que limpar os esgotos com creolina, arejar os lixões, ensolarar os aquários.

3) Obriga aos municípios fixar os limites de carga para veículos com tração animal, sempre considerando os declives e, claro, a tara das carroças. Nestas, é proibido prender animais na traseira, muito menos na cauda dos outros.

4) Fixa a jornada de trabalho para animais de tração em, no máximo, seis horas, impedindo a labuta quando passa da metade a gestação. Comparando com a CLT, para humanos, óbvio, está uma mamata.

5) Proíbe atrelar no mesmo veículo de tração animais de espécies diferentes, como por exemplo, um burro de carga e uma égua, pois sabidamente se trata de muares e eqüinos. Boi de carro com asininos, então, nem pensar.

6) Impede conduzir animais, por qualquer meio de locomoção, de mãos e pés atados, nem de cabeça para baixo, o que se aplica para a captura de cães raivosos e galinhas destinadas para a canja na periferia.

7) Veda privar os animais da liberdade de movimentos, o que certamente extingue os confinamentos bovinos, a suinocultura, as granjas de ovos e frangos, a criação de codornas.

8) Impede submeter aos animais condições reprodutivas artificiais, acabando com a inseminação de vacas, transplante de embriões, tornando sem sentido a evolução tecnológica da pecuária.

9) Proíbe submeter os animais a processos medicamentosos que levem à engorda, o que vale tanto para hormônios de crescimento como para remédios contra vermes.

10) Condiciona a experimentação animal ao compromisso moral do pesquisador, firmado por escrito, responsabilizando-se por evitar sofrimento mental? sim, mental? ao animal. Vai saber como.

O leitor deve estar pensando que se trata de uma grande brincadeira, ou de uma pegadinha. Infelizmente, é a pura expressão da verdade. Os incisos acima foram extraídos ipsis litteris do referido código. Em nome da proteção dos animais se escangalha a racionalidade.

Há leis que pegam e as que são esquecidas. Sabe-se lá o que vai acontecer nesse caso. O governo estadual (de São Paulo. N. E.) estuda entrar com uma Adin, ação direta de inconstitucionalidade, contestando a lei no Supremo Tribunal. Os próprios deputados, pressionados, propõem agora repensar a norma. Ótima idéia: cuidar dos animais sem prejudicar o homem.

Os agricultores transitam entre a incredulidade e a ira. Não pode ser verdade que, após décadas fazendo a tecnologia e a produção evoluir, se pretenda rebaixar a pecuária ao nível primário da coleta. Os pesquisadores estão pasmos. A depender desse ecologismo primitivo, no campo se voltará a depender da bruta natureza.

A tese do bem-estar animal exige bom senso. No Paraná, pombas silvestres estão ameaçando lavouras, ingerindo as sementes plantadas, sem que os agricultores, vigiados pelo Ibama, possam livrar-se delas. Apenas tiro de rojão é permitido para espantar a passarada. Na região de Campinas e Piracicaba, capivaras multiplicam-se desordenadamente, carregando o mortal carrapato da febre maculosa. Pessoas morrem, enquanto os roedores pastam incólumes.

Agora, chega o famigerado código que tenciona garantir aos animais vida de rei, porém humilhando os agricultores e desprestigiando a ciência. Chega a ser engraçado. Urbanóides, gente que nunca viu uma vaca na vida, pensa saber tratá-la melhor do que quem a ordenha. É o fim da picada. As salsichas de hoje, bem fiscalizadas, com certeza estão mais seguras que as do tempo de Bismarck. Sobre as leis, pairam dúvidas.

Xico Graziano, agrônomo, foi presidente do Incra (1995)
e secretário da Agricultura do Estado de São Paulo (1996-98).
(Extraído do jornal O Estado de S. Paulo, de 11 de outubro de 2005)
 


Boletim Informativo nº 885, semana de 17 a 23 de outubro de 2005
FAEP - Federação da Agricultura do Estado do Paraná

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