Fantasma a trator

* Xico Graziano

A agropecuária nacional encanta o mundo. Há dez anos estava quebrada, combalida pelos nefastos pacotes econômicos. Hoje, lidera a corrida global do mercado agrícola. Um desempenho notável.

Os chamados agronegócios seguraram, entre 2000 e 2003, a economia brasileira. No PIB, no emprego e nas exportações. O saldo da balança comercial agrícola pagou a conta das importações. As metrópoles agradeceram. No interior, a roça salvou o comércio.

As fronteiras expandiram-se rumo ao Piauí, Maranhão, Mato Grosso, Bahia. Nas regiões já exploradas, terras empobrecidas e pastos degradados cederam lugar ao moderno cultivo, promovendo a conservação do solo. A pecuária conheceu as raças européias e ganhou qualidade. Fruticultura, piscicultura, silvicultura, tudo se aprimorou.

As tradicionais culturas de café, cana-de-açúcar e cacau passaram por difícil aprendizado. Sem tutela pública, foram obrigadas a enfrentar o capitalismo agrário. Penaram, mas deram a volta por cima.

Assim, alicerçado em boas notícias, o marketing rural foi vencendo o preconceito nascido desde Jeca Tatu. Jornais de grande circulação abriram editorias para noticiar a agropecuária. Revistas lançaram números especiais enaltecendo a virtude dos agronegócios. O campo ganhou destaque.

De atrasado, construiu imagem de empreendedor. De endividado, transformou-se em case de sucesso. A cultura rural valorizou-se e as festas de peão boiadeiro estrelaram na TV. Caipira virou chique.

Tudo parecia uma maravilha. De repente, o tratoraço tomou Brasília. Milhares de agricultores levaram sua indignação contra a política agrícola federal. Reclamam de tudo. Dos juros altos, do câmbio baixo, dos preços aviltados, dos custos elevados. Do seguro rural, sempre prometido, nunca visto.

Roncaram motores, gritaram, rivalizaram com a lama da corrupção que enoja o País. Obtiveram sucesso relativo. Novos recursos foram liberados para a comercialização da safra. Outros R$ 3 bilhões se anunciaram para a rolagem das dívidas com os fornecedores de insumos. Promessas variadas adoçaram a discussão. Valeu a pena?

Ninguém duvida, entre os economistas rurais, de que o setor agropecuário tenha perdido significativa rentabilidade nesta safra. A conjuntura esteve realmente desfavorável. É sabido, também, que a seca assolou pra valer as colheitas do Sul-Sudeste.

O chão rachado pela seca não afetou, todavia, o Centro-Oeste. E o azar dos gaúchos foi a sorte no cerrado: a quebra da colheita de soja e milho fez o preço reagir, embora moderadamente. Além do mais, as exportações avançam, enxugando a oferta interna. Poderia ter sido pior.

Os ciclos de baixa no preço são comuns na atividade rural. Devem-se, quase sempre, à falta de planejamento da produção. Hoje, com a globalização, o problema se origina, por azar, no exterior. Quando percebem, os produtores nacionais se deparam com o mercado inundado. O preço vai para o brejo.

A recente manifestação do tratoraço levanta uma dúvida atroz, quase um mistério: por que os produtores rurais se dizem quebrados? Particularmente nos grãos, ganharam bom dinheiro nos últimos anos. As margens de lucro bruto se situaram, na soja, ao redor de 50%. No algodão, estiveram em 80%. Como agora, após anos virtuosos, não conseguem honrar seus compromissos? Eis a pergunta crucial.

Um atavismo explica a charada. Ocorre que a primeira coisa que um agricultor pensa, quando ganha dinheiro, é em comprar mais terra. Abrir nova fazenda, ampliar a produção. Assim funciona a lógica do produtor, como que a realização de um sonho familiar. Pratica uma compulsão.

Ao imobilizar capital em terra, esquece-se de fazer provisão. Esse desejo meio oligárquico o torna imprevidente, um desastre na economia capitalista. Seu arrojo, esse jeito pioneiro, desbravador, o empurra para o lado da imprudência. Resultado: quando vem o aperto, na época das vacas magras, entra no desespero, sem poupança.

Há um lado pedagógico nas crises. Uma espécie de aprendizado amargo. Os agricultores precisam se convencer de que inexiste capitalismo sem riscos. O governo pode e deve proteger o setor contra a pressão dos oligopólios, sustentando a renda rural. O que não significa, porém, estatizar a economia agrária, pois isso privilegia a ineficiência.

É lindo ver aquela fila de máquinas agrícolas confrontando a podridão política na Esplanada dos Ministérios. Democracia se constrói com participação popular.

O tratoraço, porém, não pode errar o tom. Sabe-se que as lideranças rurais estão, por outros motivos, irritadas com o governo. O Incra, em conluio com o MST, não cessa a ameaça de lhes seqüestrar as terras. Decepcionados, percebem o presidente Lula se utilizar do prestígio do ministro Roberto Rodrigues para afagar a turma. É compreensível.

Mas a realidade se impõe. Não é verdade que o setor agrícola enfrente “a maior crise de sua história”, conforme se argumenta. Nem é crível que os produtores deixem de plantar na próxima safra. Ninguém abandona uma paixão assim facilmente.

Ao forçar a barra nas reivindicações, desanda o discurso ruralista. Exagerando no negativismo, abre brecha para o retorno da malfadada imagem do passado. O marketing da agropecuária se arrebenta quando se exige, ao léu e a rodo, a rolagem das dívidas rurais. Não está correto.

Aqui mora o terrível mal, um fantasma que assusta a opinião pública e causa tristeza no agricultor de bem. Reivindicar, sim. Prorrogar, talvez. Calote, nunca.


Boletim Informativo nº 872, semana de 11 a 17 de julho 2005
FAEP - Federação da Agricultura do Estado do Paraná

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