Câmara arbitral |
Nas aulas de economia rural, conta-se que certo vereador, bravo com a violenta queda do preço do milho, propôs incontinenti a revogação da lei da oferta e da demanda. Pelo menos naquele município. Engraçada, a história ilustra um sério problema. Ao contrário dos demais setores da economia, a agropecuária não exerce nenhuma influência sobre os preços de suas mercadorias. Em bom economês, significa dizer que produz sob concorrência perfeita. Nessas condições, opera diretamente a velha lei da oferta e da procura. Aumentou a safra, cai fatalmente o preço. Se a demanda, então, estiver fraca, o mercado arrebenta com a renda do produtor. Sem que ele nem desconfie por quê. Na outra equação, a dos custos, o dilema é ainda maior. A agricultura adquire insumos e máquinas cujos preços são controlados por poderosos grupos industriais. Estes se configuram em oligopólios, quer dizer, funcionam em concorrência imperfeita. A diferença é fundamental. As grandes empresas, por dominarem os mercados, procuram repassar aos preços suas elevações de custo. Buscam preservar o lucro de seus negócios. Assim atuam as multinacionais que vendem máquinas, fertilizantes ou defensivos agrícolas. Já quando a concentração do poderio econômico se exerce na compra, formam-se os oligopsônios. Parece palavrão, e magoa. Basta ver a dor de cabeça dos citricultores, que sofrem a tirania das empresas de suco de laranja. Uma verdadeira "tesoura de preços", conforme a denominou Alberto Passos Guimarães, compromete a renda no campo. Na entrada da produção, os recursos tecnológicos apresentam preços controlados por conglomerados. Na saída, as agroindústrias, os supermercados e grandes comerciantes impõem condições de compra. A renda rural, coitada, acaba espremida. Os agricultores, ao se defrontarem com os preços de mercado, sem influenciá-los, dependem do jogo de interesses na cadeia produtiva. Que quase nunca os favorecem. O aço, no ano passado, protagonizou o exemplo mais dramático. Os aumentos de preço da liga metálica quase o dobraram, fruto, dizem, das fortes compras chinesas. Tudo bem. A indústria de máquinas agrícolas, tranqüilamente, repassou a elevação para seus produtos finais. Onde estourou o problema? Nas costas do agricultor. Pagaram um acréscimo de 40% pelos tratores que utilizam. Os repasses de custos andam em cadeia, passando de setor em setor, até chegar à roça. Todos agem com racionalidade, mas o único prejudicado é o produtor rural. Toma um choque no bolso. Como garantir, nessas desiguais condições competitivas, a lucratividade da agropecuária? Aqui está a pergunta-chave da moderna economia agrária. Respondê-la significa balizar uma política econômica em defesa dos produtores. Uma espécie de salvaguarda contra a desvalorização do trabalho rural. Nada de privilégio. Economistas ortodoxos e urbanóides em geral se equivocam quando, para o campo, defendem o mesmo tratamento público dado às atividades da urbe. Ora, mais que liberalismo, significa burrice econômica. Trata-se simplesmente de reconhecer que existem condições desiguais de concorrência operando, historicamente, contra o setor rural. Não se confunde com abuso do poder econômico. Para este caso existe a legislação antitruste, acionada neste momento contra os frigoríficos, que massacram os pecuaristas. O Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) é básico, mas insuficiente. A questão da concorrência desigual surge de forma mais sutil e complexa. Sua origem advém da enorme pulverização entre milhões de produtores rurais, de um lado, e poucas grandes empresas, de outro. É certo que o cooperativismo, bem executado, melhora essa relação, fortalecendo a escala dos agricultores. Algum mecanismo jurídico, ainda inexistente, porém, precisa ainda ser desenvolvido. É impossível continuar vendo os agricultores absorverem totalmente a elevação de suas curvas de custo, influenciadas por fatores externos à produção agropecuária. Agora, com a globalização, o problema vem de longe. Na produção, tudo vai bem. Na hora de vender, aquela tragédia. A Comissão de Agricultura da Câmara dos Deputados pensa em propor uma espécie de "câmara arbitral", nos moldes das existentes na Organização Mundial do Comércio (OMC), para decidir a parada. Hoje em dia, a cada momento, surgem problemas na economia rural, que se transformam em discussões infindáveis. Ninguém sabe direito quem tem razão. Monitorando o setor, essa câmara arbitral poderia ser muito útil. Funcionaria como uma instância máxima de decisão na economia dos agronegócios. No caso de uma estiagem, como ocorreu nesta safra, as arbitragens oficiais norteariam a prorrogação de empréstimos. E assim por diante. Tal política não fere a livre iniciativa, tampouco adota o laissez-faire. Parte do princípio de que, no livre jogo do mercado, há um setor que, embora competitivo, está sendo constantemente prejudicado, devido ao fato de se manter em concorrência perfeita no contexto da economia concentrada. Aqui está o germe da sempre reclamada, e nunca formulada, política agrícola. Ela não exige, conforme pensava aquele vereador, eliminar o mercado. Mas impõe, isso sim, regras na selvageria do capitalismo. Contra
o poderio econômico. |
*Xico Graziano, agrônomo,
foi presidente do Incra (1995) | |
Boletim Informativo nº
868, semana de 13 a 19 de junho de 2005 | VOLTAR |