Olho no boi *Xico Graziano O boi é um bicho extraordinário. Sua capacidade de elaborar proteína, a partir de gramínea, o diferencia entre os animais. Domesticado, sua carne foi fundamental para a evolução humana. Na digestão está o segredo. Os herbívoros ruminantes, como se classifica o boi, possuem duplo estômago, o que permite uma espécie de remastigação dos alimentos ingeridos. Nesse processo, a celulose acaba sintetizada em aminoácidos essenciais. O verde do capim vira carne vermelha. No rumem - a popular “dobradinha” - vive verdadeiro exército de microorganismos, que ataca as células vegetais. A flora intestinal, essa fantástica simbiose entre seres invisíveis e mamíferos, se destaca nos ruminantes. Quando os bovinos lambem sal, essas bactérias se nutrem, fortalecendo a engorda do animal. Outros animais fornecem proteínas ao homem, destacando-se os suínos e as aves. Diferentemente dos bovinos, todavia, eles competem com as pessoas na alimentação, pois sintetizam seus aminoácidos a partir de rações, cujos componentes básicos são soja, milho ou trigo. Nesse caso, a proteína vegetal, que se transformará em carne, é a mesma servida na mesa da família. Quando surgiu a doença da vaca louca, na Europa, o mundo tomou consciência de que, nos trópicos brasileiros especialmente, o gado pastava ao sol. Lá, o inverno rigoroso exige o confinamento e o arraçoamento artificial. Aqui, a natureza privilegia o boi “verde”. A ecologia adorou essa história. Desde então, a carne nacional avançou no mundo. Ano passado, o País assumiu a liderança mundial nas exportações. Norte-americanos e australianos, os grandes criadores mundiais, se quedaram surpresos. Somam 142 os países compradores. Churrascarias do tipo rodízio, invenção brasileira, se inauguram aos montes nos EUA, no Japão, na China. O bife brasileiro virou campeão. Um olho nos gringos, outro por aqui. O mercado interno consome 35 kg per capita, nível elevado, porém estável. Empata com a carne de frango. O marketing da carne vermelha poderia ser aprimorado. O rebanho cresceu. Mais que gente, existem 196 milhões de bovinos no Brasil. De mamando a caducando, como se diz na roça. Trata-se do maior rebanho comercial do mundo. Fala-se “comercial” porque, na Índia, o rebanho é maior, mas a vaca é sagrada. Hindu não come carne bovina. Apenas ordenha o leite. Ocorre, silenciosamente, uma revolução na pecuária nacional. Raças européias se misturam com o Nelore, abrasileirado há século, gerando descendentes de elevada performance. Pastagens degradadas cedem lugar ao pastoreio rotativo. Suplementos minerais enriquecem a dieta animal no cocho. Doenças endêmicas, como a febre aftosa, são eliminadas. Novilhos precoces oriundos das modernas criações se terminam entre 20 e 24 meses, fornecendo carne macia, saborosa e light. Antes, o boi ficava na invernada até completar 5 anos, quando era abatido, com rija carne. É positiva a agenda da pecuária bovina. Existem, porém, ameaças negativas. Na mídia, muitos ainda raciocinam como nos velhos tempos. Volta e meia o pecuarista, na novela, faz papel de latifundiário, quando não de bandido. Na reforma agrária, pastagens se confundem com terra ociosa. Influenciados pela época inflacionária, quando o boi servia à especulação fundiária, os do MST, agora conluiados com o Incra, teimam em invadir fazendas de criação de gado. Pensam, os justiceiros agrários, que capim serve ao mal. Quiçá o visual da planície os incomode. Desconhecem que, diferentemente de outrora, hoje as pastagens são adubadas, as variedades de capim são geneticamente selecionadas, combatem-se pragas e doenças, tudo igual às culturas de cereais. Esses esquerdosos ou desconhecem os avanços da pecuária, ou não gostam do boi. Talvez, vai saber, sejam vegetarianos enrustidos. Os trabalhadores em geral, sem-terra ou operários urbanos, adoram um bom bife ou um ensopado com batatas. Até inventaram, na culinária, a vaca atolada, costela com mandioca. Ora, os agraristas, pequenos burgueses, comem filé mignon. O governo também não tem ajudado a pecuária como poderia. O sistema de sanidade animal do País continua frágil. O conhecido SIF está caduco. Nas fronteiras, a fiscalização é deficiente. O Ministério da Agricultura teve 63% da verba para defesa sanitária cortada do orçamento de 2005. Na guerra comercial da globalização, configura uma temeridade. Há atritos no próprio setor. Os frigoríficos se locupletam na exportação, ganhando rios de dinheiro, enquanto arrocham o preço do boi. Em 2004 houve um aumento de 67% no volume exportado, cujos preços se valorizaram, em dólares, 37%. As divisas somaram R$ 2,6 bilhões, um recorde. No mesmo período, a arroba do boi caiu 12% para o produtor. Um absurdo. Não é por outro motivo que os pecuaristas denunciaram os frigoríficos ao Cade. Claramente ocorre manipulação da margem de lucro. Fora o tradicional desconto na balança. Por fim, certos ambientalistas inventaram de falar mal da boiada por conta do efeito estufa. Como assim? Explica-se: o processo da digestão dos ruminantes fabrica gás metano como subproduto. Os bichos, coitados, precisam expelir os vapores do estômago, duplo, como se viu. Fizeram as contas e concluíram: o arroto do boi é antiecológico. Fora a flatulência! Osho, guru indiano, ensina que a tolice é o maior dos defeitos humanos. Para combatê-la, o caminho passa pelo conhecimento, fonte da sabedoria. Talvez assim, com informação, caia o preconceito contra o mundo rural.
|
Xico Graziano, agrônomo, foi presidente do Incra (1995) |
Boletim Informativo nº 864, semana de 16 a 22 de maio de 2005 | VOLTAR |