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Paulada no agricultor
*Xico Graziano |
A agropecuária nacional sofre uma terrível limitação. A propriedade rural, para ser efetiva, precisa comprovar sua produtividade. Senão, pode ser desapropriada. Um verdadeiro antiprêmio. A justificativa remonta à religião. A terra, considerada bem divino, exige zelo na exploração. Terra ociosa serve à usura, pecado condenável. Fundido com a moral, o raciocínio gera o conceito da função social da propriedade. A exigência, inscrita na Constituição, limita o direito da propriedade privada da terra. Somente na agricultura se faz censura pública ao usufruto. Afinal, alguém já ouviu dizer que a padaria do português deve cumprir meta de produção, tantos pães por dia, por exemplo? Certamente não. Na indústria, ou no comércio, os empresários investem seu capital e sua energia, sujeitando-se ao risco do mercado. Assumem a responsabilidade do negócio e, se fizerem as coisas certas, prosperam; se gerenciarem errado, quebram. Assim funciona a economia. No campo, todavia, se o proprietário deixar de cumprir as metas mínimas estabelecidas pelo governo, pode perder sua fazenda e suas benfeitorias. O Incra fiscaliza a produção em nome da justiça social. Uma ameaça sobre o cangote dos agricultores. Quer agora o governo Lula rever os níveis de produtividade oficial, aqueles que delimitam a terra produtiva. Firmados há 30 anos, tais índices estariam superados pelo avanço do desenvolvimento tecnológico. Pode ser. A proposta surgiu em pleno abril vermelho, parecendo uma resposta às estripulias do MST. Se for, configura um desastre político. Uma prova de que o presidente odeia os agricultores prósperos. Do ponto de vista eminentemente técnico, a discussão poderia evoluir. Fundamental será não alterar os índices, mas melhorar os critérios, simplistas, do processo de avaliação. Hoje, as vistorias de imóveis rurais resultam num cálculo linear, que gera dois números aterradores: o GUT - Grau de Utilização da Terra - e o GEE - Grau de Eficiência na Exploração. Quanto ao primeiro, o mínimo aceitável é de 0,8, significando que 80% da área aproveitável do imóvel deve ser explorada. Mede, portanto, o grau de utilização bruta da propriedade. Já o segundo índice capta o nível de produtividade obtido no uso da terra. É aqui que o governo quer mexer, elevando seu rigor. Realizando estudos agronômicos, coisa que a Embrapa, e não a Unicamp, tira de letra, se perceberá que o problema começa na matemática burra. Por exemplo, se uma fazenda de soja ou gado, avaliada pelo governo, tirar no GUT nota 0,79, abaixo dos 0,8 exigidos, vai para reforma agrária como se fosse ociosa por completo. O índice é "seco", quer dizer, não se acumula, como, por exemplo, no Imposto de Renda. Segundo, e mais grave, o cálculo desconsidera a dinâmica da produção, avaliando a produtividade da fazenda apenas no ano agrícola. Pior ainda, os técnicos analisam papéis, não tomam poeira da roça. Conferem notas fiscais, de venda de mercadorias ou de compra de vacinas, para verificar o nível de produção. A burocracia suplanta a agronomia. Talvez o debate provocado pelo governo - inoportuno, segundo seu próprio ministro da Agricultura - pudesse ser enriquecido, consolidando na legislação critérios mais dinâmicos, mais complexos, regionalizados, para decidir se uma fazenda deve ou não ser desapropriada. A matéria exige calma. Pensem no futebol, raciocínio que sempre empolga o presidente. Um centroavante bem que pode ter seu desempenho avaliado pelos gols que marca. Suponha que tenha balançado pouco a rede no último campeonato. Hora de aposentadoria? Espera lá! Antes de julgá-lo, será preciso saber se o jogador não se machucou na temporada, se o técnico o prestigiou no esquema tático, se problemas familiares, comuns no esporte, não o atrapalharam. Melhor verificar sua condição física, a idade, analisar os times por onde passou. Na agricultura, o governo exige crescente produtividade sem oferecer as demais condições que garantam a renda do produtor rural. Ora, se fosse assim, o Ronaldo teria sido excluído do futebol devido à contusão no joelho. Passaria um vexame, injusto. Vai ver nem casava com a moça bonita. Sem entrar na discussão jurídica, para exigir maior nível de produção no campo, obrigando os agricultores a elevar sua produtividade, será necessário, antes, perguntar como está o comportamento do mercado. Senão o agricultor investe, eleva o nível de produção e, depois, vai vender para quem? A qual preço? Forçando a produzir mais, o governo precisaria obrigar-se a comprar o eventual excedente. Mas quem pagará essa conta? A sociedade toda, na declaração de renda? O assunto é complicado. Falar em ampliar os níveis de produtividade, exigindo mais tecnologia do produtor rural, parece causa nobre. Mas, como diria Ortega y Gasset, e as circunstâncias? No futebol, centroavante goleador ganha salário extraordinário, além de lhe garantirem condição física adequada. Na agropecuária, comum é o bom produtor levar paulada na cabeça, como agora, em plena crise de rentabilidade do setor. Ao invés de alento, toma bordoada do Rossetto. Ninguém é contra a reforma agrária, se criteriosa e bem planejada. Mas não venha o governo brandir espada de Dâmocles sobre a cabeça dos agricultores. Primeiro, garantam a produção e a renda do agricultor. Depois, aí, sim, venham cobrar resultados. Fora disso, é perseguição. Assim, na pressão, acabou a carreira de muito centroavante. Injustamente. *Xico
Graziano foi presidente do Incra e secretário da Agricultura de São
Paulo |
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Boletim Informativo nº 862,
semana de 2 a 8 de maio de 2005 |
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