Profissão de fé

*Xico Graziano

O Rio Grande do Sul passou por uma seca inusitada, que lhe roubou o vigor das colheitas. No interior gaúcho, a economia está amortecida. Nem a chuva recente animou os agricultores. Uma tristeza.

Os produtores rurais fizeram tudo direitinho. Acreditaram no mercado e aumentaram seu plantio. Investiram em tecnologia, atrás de maior produtividade. Gastaram em fertilizantes e defensivos, esmeraram-se na condução da lavoura. Nada adiantou. A colheita chegou rala e as contas agora apertam seu calo. Culpa de São Pedro.

Volta e meia, o azar do tempo marca sua sina no campo. Riscos naturais são uma característica da atividade agropecuária. Períodos sem chuva se alternam com enchentes, granizos se juntam com geadas. Perde-se o plantio quando a semente seca, ou a colheita, quando a umidade exagera. Na roça, a imprevisibilidade assusta o trabalho humano.

É fundamental entender esse ponto. Na indústria, a produção pode ser programada. Parafusos produzem-se por hora, na velocidade em que se ordenam as máquinas. O ambiente é controlado. Pode chover canivetes, as peças saem roliças e lustrosas. No limite, apenas um terremoto, ou um incêndio talvez, bloqueará a produção.

Nas fábricas, o processo tecnológico define certa rotina de produção. Custos podem ser manipulados, reduzidos, aumentando-se o ritmo de produção, economizando pessoal com autômatos. Economistas, administradores e engenheiros adoram entrar nesse mundo, nele regulando resultados.

Aumenta aqui, aperta ali, inclui lá, as variáveis são controladas pela gerência. E quem for melhor, mais criativo ou organizado, estratégico, como gostam de afirmar, pula na frente da concorrência.

Na agricultura tudo é mais complexo e mais difícil. Por mais que se intente controlar o processo da produção, ronda o imponderável. A razão básica, essencial, reside no caráter biológico das atividades agropecuárias. Depender da natureza distingue a agricultura dos demais setores da economia.

Há épocas certas de plantar, colher, criar. Plantas e animais são, afinal, seres vivos. Pragas, doenças e ervas invasoras, também. Sujeitam-se, portanto, às leis biológicas, à ecologia. Na fábrica, um vazamento de óleo se conserta fácil. Na roça, uma bactéria pode virar uma epidemia.

Parece tudo tão óbvio. Mas, quando burocratas financeiros do governo demoram para liberar empréstimos do crédito rural, o que é comum, provam desconhecer a obviedade. Agrônomos receiam economistas pela sua contumaz insensibilidade ao banal: na agricultura, há que respeitar prazos.

Passado o período de plantio, de que adianta liberar o dinheiro no banco? O avanço da tecnologia tem auxiliado os agricultores a se livrarem da dependência estrita das leis naturais. Antes, as limitações impostas pela natureza eram determinantes. Trigo somente vingava no inverno, solos areosos não valiam para nada.

Hoje em dia, a adubação corrige os terrenos fracos e a melhoria genética permitiu adaptar novas variedades aos climas diversos. Os pesquisadores auxiliam os agricultores a dominar os processos naturais, livrando-os do determinismo básico. Resistência à pragas e doenças, precocidade, irrigação. A cada técnica, um avanço sobre a natureza. Assim se tornou possível alimentar as massas urbanas.

Facilita de um lado, dificulta de outro. Nesse processo evolutivo, corre-se um risco: elevando o artificialismo, alteram-se leis biológicas. Aqui está o dilema ecológico fundamental da moderna agricultura: a busca pela produtividade e a especialização tendem à maior instabilidade do agroecossistema. Doenças e pragas, antes inexistentes, surgem avassaladoras. Haja desafio a ser enfrentado.

Parece, também, que o clima se está modificando. As chuvas demoram a chegar, no início da primavera, atrasando o plantio da safra de grãos. E os chamados veranicos, períodos sem chuva em pleno verão, se tornam comuns. Na colônia gaúcha, dos dez últimos meses de fevereiro, sete passaram por fortes veranicos. O último não se via igual há 50 anos. Neste ano, como se não bastasse o revés climático, a renda agrícola está espremida por um perverso tripé: queda do câmbio, elevação dos custos e preços internacionais comprimidos. Quer dizer, sem nenhuma seca a situação já apontava dificuldades financeiras para os produtores de grãos em 2005.

Menos dramática fica a situação dos agricultores do Centro-Oeste, onde a chuva correu farta. Em certo sentido, até, a perda da safra gaúcha de soja e milho, estimada em 50%, ajuda as demais regiões, pois ao enxugar a oferta promove recuperação dos preços. Azar de uns, sorte de outros.

Os agricultores sulinos reclamam, com razão, que lhe prorroguem as dívidas do custeio rural. Solicitam, acertadamente, que novos financiamentos venham a lhes garantir a safra de inverno, quando poderão, tudo dando certo, recuperar parte do prejuízo causado pela terrível seca. Governos existem para funcionar.

O socorro, todavia, não pode virar privilégio. Todo o cuidado se exige com os aproveitadores de sempre, gente graúda que se endivida esperando a chance de empurrar suas dívidas para o colo do Tesouro. Não são, esses, verdadeiros agricultores, mas sim especuladores da terra. Sujam a imagem do agricultor profissional.

Não é fácil a vida de agricultor. Enfrenta mercados poderosos, teima contra a natureza, reza para escapar do tempo ruim e, ainda por cima, torce para não o confundirem com caloteiro.

Haja fé.

Xico Graziano, agrônomo, foi presidente do Incra (1995), deputado federal,
e secretário da Agricultura do Estado de São Paulo (1996-98).
(Publicado no jornal O Estado de S. Paulo, de 29 de março de 2004)


Boletim Informativo nº 859, semana de 11 a 17 de abril de 2005
FAEP - Federação da Agricultura do Estado do Paraná

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