Insegurança fundiária *Xico Graziano |
A lentidão do governo em realizar a reforma agrária é a causa principal do aumento da violência no campo. Sem novos assentamentos rurais, continuarão os assassinatos. Certo? Errado. Embora recorrente no discurso político, a escalada da violência rural guarda pouca relação com o ritmo da reforma agrária. O buraco está mais abaixo: na insegurança jurídica da propriedade fundiária. Há razões históricas. A ocupação da fronteira amazônica, propiciada com a construção da rodovia Belém-Brasília, no início de 70, ocorreu de forma desordenada. Mas não impensada. Generosos recursos públicos financiaram a confusão. Foi uma espécie de conquista do Oeste norte-americano. Nos EUA, todavia, a marcha colonizadora cumpria o Homested Act, de 1862, garantindo o direito de posse sobre as terras públicas até o limite de 67 hectares. A violência contra os índios e o tiroteio não impediram a divisão mais eqüitativa da terra. No bang-bang caboclo, dirigindo-se ao Norte, especialmente Pará e Mato Grosso, obedeceu-se a lei da selva: quem pode mais, chora menos. Grupos poderosos, amparados pelo governo militar através da Sudam, fizeram a festa. Verdadeiras sesmarias foram abocanhadas, nos moldes da época colonial. Os incentivos fiscais promoveram uma farra, conforme, em 1980, descreveu Antonio Carlos Aidar, da FGV/SP. Gado mesmo, que é bom, vingou pouco. Do ponto de vista produtivo, os projetos agropecuários da Sudam se afiguraram um fracasso. Seus objetivos escusos, porém, foram um sucesso. Madeireiros de todas as espécies, ricos e pobres, serravam a mata virgem fingindo que serviam ao progresso. Os movia, simplesmente, a ganância pelas valiosas toras. O Incra, em conjunto com os estados, fazia as concessões de terra aceitando pífias demarcações. Grilagens de terras campeavam. Posseiros se estabeleciam a rodo. Cartórios de registro eram abertos e, não demorava muito, se consumiam em incêndios suspeitos. Nunca se viu nada parecido. O final da história está sendo agora assistido pela Nação. A esculhambação gerou uma situação fundiária anômala, incerta e suspeita. Especialmente no Pará, ninguém acredita em titulo de propriedade, cadeia dominial, registro de imóveis, nada disso. Todos detêm e, ao mesmo tempo, duvidam da posse da terra. A responsabilidade por essa situação fundiária esdrúxula cabe, é óbvio, ao Estado. Fazendeiros, madeireiros, posseiros, grileiros, invasores, todos os personagens desse terrível drama, atuam e permanecem acobertados pela fraqueza dos governos. Que ninguém procure santo no inferno: os invasores de terras, dos madeireiros ao MST, todos se aproveitam do caos fundiário. Vivem do problema, detestam solução. Gostam de cadáveres. Que se prendam os assassinos e seus mandantes. Mas o presidente Lula, mesmo atacando firme aquele Deus-dará, terá o espírito de Dorothy a lhe perseguir eternamente. Afinal, a abateu a omissão do governo. Parece um castigo pelas grosserias que fizeram a Fernando Henrique. Nem o proselitismo político nem a repressão militar, porém, resolverão a encrenca. Imperioso, isso sim, será ir à raiz do problema: a fragilidade da estrutura agrária e a impunidade contra as invasões de terra. Aqui está o germe da violência no campo. Graúdos grileiros ou modestos sem-terra se equiparam no esbulho. Ambos descrêem no poder público, sabem que reintegração de posse é coisa rara. Acreditam na justiça própria e não temem represália do governo. Um se espelha no exemplo do outro, foices se equiparam às motosserras. É inacreditável que, em pleno século 21, já na sociedade pós-capitalista, ainda se lute pelo domínio privado. Desde 1850, a lei consagrou a propriedade privada da terra. Um século e meio após, pelo Brasil afora, imensas fatias do território continuam sem dono legitimado. É o fim da picada. Ao invés de melhorar, a situação piorou nas últimas décadas. Surgiram novas restrições, tornando a propriedade rural mais duvidosa e limitada. Um mosaico de confusão que espanta a prudência. Senão, vejamos. Primeiro, a largura de 150 km, nas faixas de fronteira, precisa de ratificação pública. Segundo, na faixa de 100 km de rodovia federal na Amazônia, a área pertence do governo. Terceiro, há o direito dos índios sobre suas terras ancestrais. Quarto, os remanescentes de quilombos devem ser titulados no solo que ocupam. Quinto, os posseiros usufruem o direito de usucapião. Sexto, as invasões acobertadas. Por aí vai. O Brasil, para se livrar do resquício medieval que mata no campo, precisa urgentemente de um moderno Código Agrário. Uma legislação nova, radical, que fixe definitivamente a estrutura fundiária do país. Sabendo dos modernos recursos de georeferenciamento, o Código exigirá, de saída, um recadastramento geral dos imóveis rurais, incluindo as terras públicas. Basta vontade política para realizá-lo. Seria fundamental titular, em processo sumário, todos os posseiros, que somam 500 mil produtores rurais precários. Na seqüência, seria a vez dos assentados da reforma agrária, quase 600 mil famílias. Capitalismo neles. Terras devolutas, nem pensar mais, chegou sua hora. Escritura nelas. Finalizado o trabalho, possível em 5 anos, a propriedade rural produtiva seria certificada, blindando-a contra a malandragem das invasões de terras. O que é dos índios e dos quilombolas, não se discute mais. E os perdulários da terra, especuladores que não cumprirem com a função social da propriedade, toca desapropriação neles. Seria a exceção, não a regra. Assim acaba a violência rural. O resto é firula. *Xico
Graziano foi secretário estadual da Agricultura do Governo de São Paulo, |
|
|
Boletim Informativo nº 854,
semana de 7 a 13 de março de 2005 |
VOLTAR |