Barril de Pólvora

*Xico Graziano

Na Califórnia brasileira, como se denomina a região de Ribeirão Preto, existe uma única propriedade rural cujas matas nativas ultrapassam a reserva legal de 20%. Essa raridade ecológica chama-se fazenda da Pedra.

Seus maciços florestais, 8 deles, somam 308 hectares. Fora a área de preservação permanente, nas várzeas do rio Pardo, que compõem mais 130 hectares. Ao todo, 28,4% da área da fazenda encontram-se preservadas. Uma jóia ambiental.

Pois bem. Essa propriedade encontra-se invadida pelo MST. A reintegração de posse, concedida pela Justiça, não consegue ser cumprida pela polícia militar. E nela, ninguém entra. Toda cercada, gente armada de facões, cancelas improvisadas. Parece filme de bang-bang.

É inacreditável. No centro da agricultura mais evoluída, ocorre um festival de horrores que não tem paralelo na questão agrária nacional. Primeiro, a questão ambiental. Suprema ironia: o zelo para com as matas nativas não isentou a fazenda da Pedra da saga agrarista. Ao contrário, a maior acusação que fazem seus algozes reside em seu suposto passivo ambiental. Vejam por que.

Em 1993, o então arrendatário da fazenda realizou a topografia da exploração. Medida no chão, como se diz, a área resultou menor que aquela declarada na escritura. Em decorrência, as florestas existentes suplantaram a reserva legal obrigatória, estabelecida em 20% da área total. Assim o infeliz decidiu, sem autorização prévia, derrubar um pedaço da mata virgem. Recebeu, justamente, uma multa.

Rompido, logo em seguida, o contrato de arrendamento, a multa permaneceu sem pagamento. Agora, 10 anos depois do incidente, a fazenda é acusada pela turma do MST de descumprimento da função social da propriedade, no capítulo ambiental. Um argumento malandro.

Em segundo lugar, o aspecto produtivo. Há 30 anos a fazenda serve à exploração de cana-de-açúcar. Em 1999, a usina deixou de receber sua matéria-prima, passando a terra a ser cultivada com soja e cereais. Instigado pelos justiceiros agrários a desapropriar o imóvel, o Incra promoveu sua vistoria em 2000.

O que aconteceu se parece, desta vez, com molecagem. Os técnicos do governo percorreram a fazenda bem na época da entressafra, quando o solo, em descanso, se cobria de mato. Visto que o arrendatário não dispunha de nota fiscal da venda de sua produção anterior, concluíram, simplesmente, que lá nada se produzia. Virou latifúndio no papel.

Quando, em 2001, um empresário de Sertãozinho adquiriu a fazenda da Pedra, não imaginava que estivesse entrando num inferno astral. Surgiu a terceira maledicência: especulação imobiliária.

Ocorre que a fazenda se localiza às margens da rodovia Anhanguera, praticamente dentro da cidade de Ribeirão Preto. Vários loteamentos urbanos se espalham ao redor, tornando-a valiosíssima. Esta é, de fato, uma das razões que levaram à sua última, e cara, aquisição. Na ótica do MST, negócio bichado.

Cada hectare ali vale, por baixo, R$ 30 mil. Na conta dos invasores, cada qual deverá receber 12 hectares, um quinhão que custaria R$ 360 mil ao povo brasileiro. Será o recorde mundial da reforma agrária. Um escândalo financeiro.

Em quarto lugar, poder-se-ia supor que os invasores fossem trabalhadores rurais dispostos a repartir, eles também, os frutos do agronegócio. Vã ilusão. Boa parte dos supostos sem-terra compõe-se de desempregados urbanos, pobres coitados, iludidos pela cantilena pseudo-revolucionária do MST. É o caso do Edílson, mineiro, 13 anos trabalhando em firma de segurança, parado há dois anos. Talvez uma terrinha lhe resolva a vida.

Mas essa deformação fica pequena quando se observa a enorme quantidade de oportunistas imiscuídos entre os invasores. Só vendo para acreditar. Encontra-se lá a Tereza, dona de pizzaria no Jd Independência, ao lado de seu irmão, Zé Barbosa, carro Pálio novo; a Clarisse, cuja pequena frota de Vans serve aos líderes do movimento; o Luís, funcionário da Febem; o Alemão, que toca um bar ali perto... Haja idealismo!

Quinto: o líder da invasão pode ser sem-terra, mas não vive sem-carro. Ostenta uma caminhonete Chevrolet D 20, cabine dupla. Um sonho de consumo de milhões de trabalhadores "com-terra", os tradicionais sitiantes brasileiros. Um escárnio.

É incrível. Cerca de 100 veículos foram contados dentro da área invadida. Quem nunca viu, não acredita: os barracos de lona preta se erguem trazendo ao lado a garagem para a condução. Nunca se viu isso: exclusão social motorizada!

Acabou? Não ainda. Aqui vai o pior. A maior das barbaridades é um escândalo jurídico. Quem, de fato, comanda o movimento, é o Promotor público de Ribeirão Preto. Isso mesmo, o homem pago para fazer valer a lei é quem incita ao crime do esbulho. "Podem invadir, que o Lula vai assinar o decreto logo", declara solenemente, para júbilo dos incautos. Uma temeridade.

Até os maiores radicais do PT sabem que, por força de MP, terra invadida não pode ser desapropriada. Lutam para derrubar a norma que freia, corretamente, o processo de invasão. O Promotor desconhece. Ou se finge de bobo.

O que se verifica na terra do Ministro Palocci não tem paralelo na história dos conflitos agrários. O clima de impunidade que acomete o campo, a Nação assistindo a Constituição sendo rasgada por bandidos sociais, está se agravando. O promotor ergue, a la Robespierre, um barril de pólvora. Parece castigo para o impoluto Ministério Público. Um terror para a democracia.

*O autor foi deputado federal, secretário da Agricultura do
Estado de São Paulo, e presidente do INCRA


Boletim Informativo nº 846, semana de 13 a 19 de dezembro de 2004
FAEP - Federação da Agricultura do Estado do Paraná

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