Coração invadido

*Xico Graziano

Dona Nise Borges, 78 anos, está desolada. Vive um pesadelo. Busca explicações, mas não encontra respostas que expliquem seu drama. Por que o MST invadiu sua propriedade rural?

Poderia ser um latifúndio. Ledo engano. O pedaço de terra mede apenas 67 hectares, um mero sítio. Cercada por benfeitorias, representa o núcleo do sucesso familiar, construído durante décadas. Um patrimônio erguido com muito trabalho.

Tudo começou em 1939. Seu sogro, João Borges, aventurou-se rumo ao oeste paulista, na região de Araçatuba, adquirindo a gleba Santa Adélia, às margens do rio Tietê. Coberta com mata virgem, sem acesso rodoviário, a fazenda exigiu suor para ser desbravada.

A cultura do algodão, estimulada em decorrência da crise do café, dividiu inicialmente seus 5 mil hectares com as pastagens extensivas. Integrando pecuária com lavoura, a Fazenda Santa Adélia evoluiu nas mãos do Hélio, filho de seu comprador, com quem Dona Nise se casou. A partir dos anos 60, tornou-se uma agropecuária exemplar.

Passaram-se os anos. Em 1990, a CESP fechou as comportas da barragem de 3 Irmãos, no rio Tietê, inundando 40% da propriedade. Todas as antigas benfeitorias da fazenda submergiram no grande lago. Uma tristeza causada pelo progresso. Paciência.

Em 1994, Dona Nise e seu marido decidiram promover a divisão em vida da propriedade para os filhos. Cada qual tomou posse de 750 hectares, permanecendo comum uma modesta área, cercando as benfeitorias erguidas após a inundação. Local para terminar os dias juntos, em paz.

Tudo corria bem. Mas o destino aprontou uma peça. João, um dos filhos, teve uma diverticulite estourada no abdômen e se viu tomado pela septicemia. Quase morre. Gastou uma fortuna para escapar do caixão. Como miséria pouca é bobagem, desentendeu-se com a esposa e enfrentou uma separação litigiosa. Coisa complicada.

Tempos depois, recebeu a visita do Itesp, o instituto de terras paulista. Técnicos vistoriaram sua propriedade e, inesperadamente, a classificaram como improdutiva, segundo as normas do Incra. Não podia ser verdade.

Desde então, nunca mais sossegou a família Borges. Enquanto o advogado da família labutava contra o governo, os técnicos do Itesp percorriam as demais glebas divididas. Em duas, o veredicto se assemelhou: reforma agrária nelas também.

Além dos azares da vida, no âmago dessa história se esconde uma grande injustiça. Relatá-la exporá um engodo, uma malandragem típica nos meandros da reforma agrária brasileira. É simples entender.

Os netos de João Borges tiveram suas fazendas classificadas como improdutivas porque o Itesp aceitou vergonhosa deturpação no laudo de avaliação técnica. Procedendo assim, desqualificando a produtividade no papel, as terras tornaram-se ociosas. Coisa inacreditável.

A fazenda do Fernando, o filho economista de Dona Nise, ilustra cabalmente a adulteração agrária. Lotada de gado da melhor qualidade, pastagens divididas com modernas cercas elétricas, manejo rotativo do rebanho, tudo refletindo uma modelar exploração agropecuária. Nada disso valeu. A ideologia falou mais alto que a agronomia.

Só escapou do ímpeto agrarista a fazenda do Roberto, agrônomo dos melhores, formado na Esalq, em Piracicaba. O que lhe salvou não foi sequer a técnica, de resto primorosa. Mas sim os remanescentes de mata virgem, espalhados pela fazenda. A ecologia botou espanto na maledicência do Itesp.

Os laudos de vistoria, todos, estão sendo contestados judicialmente. Mas o estrago já foi feito, e o MST não dorme no ponto. Mobilizou os assentados do projeto Esmeralda, perto dali, organizando a invasão do sítio da Dona Nise. O gesto funciona como válvula de pressão sobre o governo. O movimento quer, mesmo, a terra dos filhos dela.

Certas histórias, para serem críveis, exigem o rigor da minúcia. Somente conhecendo detalhes técnicos do laudo elaborado pelo Itesp pode-se aquilatar, devidamente, o tamanho do equívoco cometido. Erro nas contas de matemática, sumiço da área de preservação florestal, soma das praias da Cesp na área de pasto da fazenda, e por aí vai. Uma barbaridade.

Infelizmente, procedimentos tortuosos tornam-se regra no deformado processo da reforma agrária. Normas técnicas sucumbem às ações políticas. Em nome da justiça social, ergue-se uma podridão, alimentada por uma patota disfarçada de esquerda radical.

Na falta dos verdadeiros latifúndios, assim, no papel, se fabricam as propriedades improdutivas destinadas atualmente para a reforma agrária. Quando não, desapropriam-se terras distantes, de péssima qualidade, arenosas, pedregosas, com fortes restrições de uso.

Propriedades bem exploradas, quase sempre com pecuária de corte, caem na mira dos justiceiros agrários e são derrotadas nas mentirosas contas da avaliação. Isso explica porque a maioria das áreas destinada aos assentamentos rurais apresenta, hoje, menor produtividade que outrora. Quer dizer, a reforma agrária eleva, ao invés de reduzir, a ociosidade da terra.

Proprietários de vários cantos do país começaram a denunciar os agrônomos fajutos para o Crea, solicitando a cassação de seus diplomas. Afinal, a causa política que defendem não pode subjugar o juramento profissional que fizeram. Em Uberlândia, o alvo está no Incra. Em Araçatuba, no Itesp.

Quem reclama são os próprios agrônomos dos órgãos de governo, os corretos, que se envergonham das falcatruas ideológicas cometidas pelos seus colegas. Para eles, reforma agrária exige planejamento, não fraude.

A credibilidade das instituições está sendo atingida no fígado com essas denúncias. Para a Dona Nise, invadida pelo MST, é o coração que sofre. Uma dor que macula uma história de vida.

*O autor foi deputado federal, secretário da Agricultura do Estado de S. Paulo
e presidente do INCRA
(Extraído do jornal O Globo, de 9 de novembro de 2004)


Boletim Informativo nº 842, semana de 15 a 21 de novembro de 2004
FAEP - Federação da Agricultura do Estado do Paraná

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