Era 30 de novembro de 1964. O general Castelo Branco, primeiro presidente militar do País, promulgava o Estatuto da Terra, defendendo a reforma agrária. Até hoje permanece a dúvida: por que o regime autoritário adotou a proposta que mais combatia?
A análise histórica predominante argumenta que os militares roubaram a principal bandeira da esquerda brasileira visando a iludir e desmobilizar os movimentos sociais da época. Assim, o Estatuto da Terra representa, na verdade, um subterfúgio político. Uma esperta enganação.
Dezenas de estudos, teses acadêmicas e livros acabaram publicados referendando tal idéia. Os mais conceituados intelectuais a ela aderiram. Todos acreditando que a lei da reforma agrária vinda dos militares só poderia ser um embuste. Virou um paradigma.
Não fazia lógica pensar o contrário. Desde Francisco Julião e suas Ligas Camponesas, famosas no Nordeste entre as décadas de 1950 e 1960, a reforma agrária ecoava ruidoso brado contra o poder oligárquico. Com a assunção de João Goulart à Presidência da República, em setembro de 1961, os comunistas, que lideravam as demais organizações de esquerda, avançaram. A ordem era tomar os latifúndios e distribuí-los aos trabalhadores rurais. Tempos ruidosos.
O diagnóstico soava comum na América Latina. As desigualdades da estrutura agrária causavam a baixa produtividade agrícola e levavam à pobreza do homem do campo. Um entrave ao desenvolvimento. A teoria econômica se juntou com a política e, no calor dos acontecimentos, em março de 1963 Jango encaminhou ao Congresso Nacional o projeto governamental de reforma agrária. O assunto esquentou.
As desapropriações de terras, segundo o plano oficial, seriam permitidas obedecendo a nove condições. A reforma atingia de tudo. Incluía as fazendas improdutivas, as exploradas em arrendamento ou parceria e, inclusive, as que, "embora utilizadas", fossem "indispensáveis ao abastecimento dos centros de consumo". Haja ousadia.
A reação dos conservadores, apavorados com a perspectiva de verem expropriadas suas posses, chegou forte. Em 7 de outubro de 1963, o projeto esquerdista de Jango foi derrotado no plenário da Câmara dos Deputados. Mas nem o presidente nem os agraristas se conformaram. E decidiram partir para o revide, nas ruas. Grandes comícios se organizaram, discursos acalorados pregavam as reformas de base, a começar da reforma agrária. Na lei ou na marra.
Deu no que deu. Recuperar esse clima político é importante para entender a perplexidade daqueles que, engajados na luta da reforma agrária, viram, meses após o golpe, Castelo Branco assinar a lei fundiária. Sentiram-se como alguém ardilosamente surrupiado de seu enredo. Qual era, afinal, o intuito do regime militar?
Carmem de Salis, jovem e atrevida historiadora, lança agora novas luzes sobre essa intrigante questão. Sua excelente tese de doutoramento, apresentada recentemente à Unesp-Assis, rompe com a teoria dominante na esquerda, comprovando, com sólida análise, que o governo militar não jogava para a torcida. Os formuladores do Estatuto da Terra defendiam a reforma agrária com convicção.
A diferença entre a proposta de João Goulart e a de Castelo Branco residia, fundamentalmente, na ideologia. Ambos visavam a desapropriação dos latifúndios. Mas na perspectiva da esquerda a reforma agrária deveria desaguar no socialismo. Para os castelistas, ao contrário, o objetivo era encorajar o capitalismo. Como?
Fortalecendo a propriedade privada da terra. Acabar com os "parasitas" da estrutura fundiária, os velhos coronéis, permitiria criar uma progressista "classe média" no campo, com óbvia tendência conservadora. Nada melhor para evitar o perigo comunista de então.
Os acontecimentos posteriores impediram que o reformismo liderado por Castelo Branco prevalecesse. Seu falecimento, em julho de 1967, abriu as portas para a "linha dura" do regime militar. Primeiro, assumiu Costa e Silva, ministro da Guerra; depois, em 1969, chegou Médici. Época dos brucutus torturadores. Com eles a política fundiária mudou completamente, priorizando a colonização das terras devolutas na Amazônia.
A ousadia da pesquisadora da Unesp abre brecha para uma
reflexão. Fazer reforma agrária não significa, automaticamente, mudar o
sistema econômico. Tampouco distribuição de terras se confunde com
socialismo. Basta analisar a história.
O capitalismo europeu só
vingou quando, na Revolução Francesa, os camponeses tomaram as terras
dos nobres. Quem ganhou foi a nascente burguesia urbana. No Japão, após
a 2ª Guerra, a reforma agrária promovida pelos EUA criou as bases de
formidável economia. Propriedade privada.
Na Rússia verificou-se diferente rumo. A política revolucionária, executada na ponta da baioneta pelos comandados de Lenin, depois Stalin, levou à forçada coletivização da agricultura. Em Cuba, igualmente, a terra acabou nacionalizada por Fidel Castro. Propriedade coletiva.
Inexiste conclusão fácil nessa matéria. Tudo indica, porém, que a evolução da história superou o drama agrário, trazendo novos dilemas ao campo, como a problema ecológico. Há, decerto, os que ainda tentam fazer revolução no campo. Mas estes se assemelham a um perverso dom Quixote: criam uma fantasia, manipulam a pobreza e inventam moinhos de vento.
Com o fim do socialismo, a luta pela igualdade social tem transformado a reforma agrária numa espécie de sonho regressivo. A sociedade global, consumista, competitiva, parece exigir, no íntimo das pessoas, aquela busca de quietude que apenas se encontra no campo, a busca da paz que brota da terra. Uma utopia.