Desde que a interpretação "oficial" do artigo 68 do Ato das
Disposições Constitucionais Transitórias da Carta de 1988 se tornou
extremamente elástica, graças ao Decreto 4.887/03 - que concede a
quaisquer grupos de pessoas, autodefinidas como descendentes de
escravos, o direito ao título de determinadas terras -, o direito de
propriedade no Brasil tornou-se ainda mais precário do que já era,
sujeito a justificativas históricas e antropológicas para que se
arrematem, a custo zero, terras produtivas.
Mais precário do que
já era, dissemos, porque o processo não é inédito, levando-se em conta
a febre demarcatória de reservas indígenas e, até mesmo, a complacência
das autoridades em relação aos esbulhos possessórios do MST e
assemelhados. Por tudo isso é auspiciosa a Instrução Normativa baixada
na semana passada pelo Incra, tornando mais rigorosos os critérios de
tramitação de processos de reivindicação de terras por grupos de
auto-intitulados descendentes de quilombolas.
A Instrução
Normativa nº 49 torna mais difícil a abertura do processo, por exigir
um laudo de antropólogos sem vínculos com os interessados, além de
consultas a órgãos ambientais, indígenas e, se for o caso, militares. A
partir de agora, não basta um grupo se identificar como descendente de
antigos ocupantes das terras de quilombolas para iniciar o processo
visando a sua posse. Além do certificado inicial emitido pela Fundação
Cultural Palmares - elaborado por antropólogos -, o processo exige
participação e acompanhamento de diversos órgãos públicos, como o
Ibama, o Instituto Chico Mendes, a Funai, o Instituto do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional (Iphan), e de setores militares, caso a
área reivindicada seja considerada de interesse de alguma das três
Forças.
Será que, mesmo assim, persistirá o inusitado movimento
de multiplicação de terras que, por definição tanto
histórico-etimológica quanto constitucional, deveriam, para merecer a
titulação "quilombola", ter sido ocupadas por escravos fugidos e
resistentes desde os tempos da escravatura no Brasil?
Afinal,
simultaneamente à edição da Instrução Normativa nº 49, o governo
federal anunciava, festivamente, o reconhecimento do território
quilombola Comunidade de Povoado Tabacaria, em Palmeira dos Índios,
interior de Alagoas. Com 410 hectares, não é das maiores áreas
reivindicadas por comunidades autodefinidas como descendentes de
quilombolas. Mas é sem dúvida emblemática, porque está nas proximidades
do local do lendário Quilombo dos Palmares. O presidente do Incra
comemora o fato por isso sinalizar que os processos de reconhecimento
dos territórios estão andando.
Há que se considerar, no entanto,
que tramitam oficialmente no Incra 736 processos com pedidos de
reconhecimento de terras de remanescentes de quilombos. As 31 portarias
de reconhecimento de terras emitidas até hoje pelo governo totalizaram
188 mil hectares, o que dá, em média, 6 mil hectares por quilombo. Se
esse número for mantido para os 736 processos em tramitação, chega-se
ao total de 4,4 milhões de hectares - área equivalente à sexta parte do
Estado de São Paulo, que tem 23,4 milhões de hectares. Agora, segundo a
Fundação Palmares e a Coordenação Nacional das Comunidades Quilombolas,
deve chegar a 5.500 o número de grupos "remanescentes de quilombos
espalhados pelo País". Segundo especialistas do Incra, se todos fossem
atendidos em suas reivindicações, o total de terras de quilombolas
chegaria a quase 24 milhões de hectares - ou seja, o equivalente ao
Estado de São Paulo inteiro!
Há a necessidade de reconhecimento
das terras dos verdadeiros remanescentes dos quilombolas, que nelas
estavam quando a Constituição de 1988 foi promulgada, como agora manda
a Instrução Normativa nº 49. Caso contrário, qualquer indício bastaria
para tornar sujeita à desapropriação quaisquer propriedades de
particulares em território nacional. Em conseqüência, conflitos
fundiários entre reivindicantes quilombolas e produtores rurais
continuariam se multiplicando em nosso país. Esperemos que as novas
regras os impeçam.
(Editorial do jornal O Estado de S. Paulo
publicado no dia 12 de outubro)