Declarações
são desencontradas e os números servem mais para encobrir do que para
esclarecer os fatos e as intenções dos agentes políticos. O julgamento
em curso sobre a Raposa Serra do Sol coloca questões relativas à
soberania nacional que devem ser seriamente consideradas. Relegá-las a
segundo plano seria um grave equívoco. O Itamaraty assinou a Declaração
sobre os Direitos dos Povos Indígenas da ONU, contrariando pontos da
própria Constituição brasileira. O Ministério das Relações Exteriores,
por sua vez, procura se esquivar, afirmando, contra todas as
evidências, que essa Declaração não precisaria ser ratificada pelo
Congresso Nacional, quando é disso, precisamente, que se trata. Das
duas, uma: ou a Declaração passa a ter vigência no País,
independentemente de ser ratificada pelo Congresso, situando-se acima
da Constituição brasileira, ou ela não tem nenhuma validade e, neste
caso, não se sabe por que o Itamaraty a teria assinado. Uma simples
assinatura sem nenhum valor? Custa a acreditar.
Da mesma
maneira, o processo de identificação e demarcação de terras indígenas
em Mato Grosso do Sul apresenta números conflitantes, que parecem
corresponder a essa mesma estratégia de assinar uma coisa e dizer
outra, como se o cidadão não merecesse o respeito à informação. Nesse
Estado, as portarias do Incra abrangem 26 municípios (já aumentados, na
semana passada, para 28), correspondendo a aproximadamente um terço do
seu território. Esta é a realidade. O resto é tergiversação. Diante das
reações suscitadas, certos antropólogos desinformados falam em 600 mil
hectares e outros, em 3 milhões. Nem eles se entendem. O Conselho
Indigenista Missionário (Cimi) calcula em torno de 4 milhões de
hectares. Segundo o que foi publicado no Diário Oficial, a área a ser
demarcada chega a aproximadamente 12 milhões de hectares, podendo
atingir qualquer propriedade e qualquer município. A insegurança
jurídica é total, prejudicando seriamente o Estado. Eles desinformam,
em vez de informar. A quem interessa essa confusão?
Em 17 de
setembro de 2007, o Cimi, órgão vinculado à Conferência Nacional dos
Bispos do Brasil (CNBB), fez uma contundente defesa da aprovação da
Declaração pela Assembléia-Geral da ONU, que ocorreu no dia 13 do mesmo
mês - logo, apenas quatro dias depois de aprovada. Em seus próprios
termos: "A Declaração se torna agora um importante instrumento na luta
dos povos indígenas pela afirmação de seus direitos. A Declaração
orienta os Estados a protegerem os territórios indígenas e os recursos
que existirem nestes. Além disso, a ONU recomenda que nenhuma ação deve
ocorrer em terras indígenas sem consentimento prévio e informado dos
povos. As formas de consultá-los devem ser de acordo com a organização
de cada povo."
Constata-se o papel propriamente político da
Declaração enquanto instrumento a ser utilizado em cada país pelas
organizações que se colocam como representantes dos povos indígenas. No
caso em questão, o Cimi se põe na situação desse interlocutor, ocupando
o lugar de mediador, embora, na verdade, atue diretamente na nomeação e
nas próprias ações da Fundação Nacional do Índio (Funai). É como se a
Funai, de órgão do Estado brasileiro, passasse a funcionar como órgão
da ONU e de seus intermediários, para além da soberania nacional. Mais
especificamente, é recomendado que toda ação dentro dos territórios
considerados indígenas seja feita somente com o consentimento desses
povos, o que vem a significar: com o consentimento do próprio Cimi e de
outros órgãos atuantes nessas terras e nesses territórios. Ou seja, o
Cimi e as ONGs, com a intervenção da Funai, terminariam se colocando
como os verdadeiros governantes dessas terras e desses territórios,
apesar de utilizarem a figura retórica de que são os próprios índios
que expressam, assim, a sua vontade.
A Declaração, enquanto
discurso político, passa a orientar a ação do Cimi, das ONGs e da
própria Funai, independentemente de ela não ter sido votada e aprovada
pela Câmara dos Deputados e pelo Senado. Esses interlocutores, esses
mediadores políticos, no entanto, começam a atuar como se ela já
fizesse parte do arcabouço constitucional brasileiro, num evidente
contra-senso e desrespeito à democracia representativa. Eis o Cimi
novamente se manifestando: "O Brasil votou a favor da Declaração, da
mesma forma que todos os países da América do Sul, à exceção da
Colômbia, que se absteve. A partir de agora, a Declaração deve ser
usada como referência no desenvolvimento da política indigenista
brasileira." Ou seja, não seriam mais a Funai e o próprio Estado
brasileiro que ditariam as normas da política indigenista, mas uma
Declaração da ONU, instrumentalizada pelo Cimi. Na verdade, o Cimi e as
ONGs, com o beneplácito de membros da Funai afinados com essa posição,
passariam a ditar a política indigenista nacional, o que já é de certa
maneira feito em Mato Grosso do Sul e Roraima.
Para além da
soberania nacional e do ordenamento constitucional, o Cimi já defende a
idéia de que essa Declaração deve servir como orientação para o Poder
Judiciário. Observe-se, novamente, o contra-senso. A Declaração não é
lei nem norma constitucional e, no entanto, essa ala da Igreja,
respaldada pelos movimentos ditos sociais, procura fazer como se ela
fosse uma norma situada acima da própria Constituição brasileira,
valendo para além e por cima dela. "A Declaração sobre os Direitos dos
Povos Indígenas também pode, a partir de sua aprovação (pela ONU), ser
usada pelo Poder Judiciário como referência para suas decisões." O
Judiciário, ainda segundo essa ótica, deveria proferir sentenças não
apoiadas no texto constitucional brasileiro, mas numa Declaração da
ONU, sustentada pelo Cimi, isto é, pela própria Igreja, por intermédio
dessa sua ala radical, que ditaria as normas do Estado brasileiro.
*Denis Lerrer Rosenfield é professor de Filosofia na UFRGS.
(Publicado no jornal O Estado de S.Paulo de 15 de setembro de 2008)