Engana-se quem pensa que os problemas desse Estado do extremo norte do País digam respeito somente aos que lá vivem. Olhando de longe, poderíamos dizer: não é conosco! Midiaticamente, porém, eles terminaram ganhando relevo graças à ação de proprietários rurais, índios, militares e governantes que se insurgiram contra a política indigenista tal como está sendo conduzida pelo governo, por considerá-la prejudicial ao interesse nacional.
Sob a ótica do politicamente correto, é como se lá se travasse uma luta entre "arrozeiros" e "índios", em que os primeiros seriam os "maus" e os segundo, os "bons", num roteiro de péssima qualidade que relembra os filmes de faroeste de terceira classe. A especificidade, no caso, é que os "bons" seriam vítimas de fazendeiros perversos, necessitando da intervenção de outros "mocinhos", a força policial federal. Entre outras coisas, desatenta-se para o fato de que os índios se encontram nos dois lados, sendo em sua maior parte aculturados, de diferentes etnias (macuxis e jaricunas, entre outras), falando português e tendo uma longa interação cultural e social com os "brancos" - 20% da população de Boa Vista é constituída de índios. A população indígena total, dependendo das estimativas, varia entre 14.500 e 19 mil pessoas.
Roraima é um Estado pobre, embora rico do ponto de vista de seus recursos naturais. A sua pobreza é tributária da ausência de regularização fundiária das terras existentes, em boa medida resultado de anos de inércia deste governo e do anterior, que foram incapazes de titular essas terras. No processo de transição do então Território de Roraima para o novo Estado, a questão de se são terras da União ou do Estado não foi até hoje resolvida, criando uma insegurança jurídica, nociva para os que querem trabalhar e se desenvolver.
O lado particularmente perverso consiste numa inatividade dos que almejam produzir, fazendo o contribuinte pagar anualmente mais de US$ 1 bilhão para que esse Estado possa funcionar. Incapazes de gerar riquezas, vivem da contribuição de todos os brasileiros. Todos estamos pagando pela incompetência governamental, que só tende a agravar o quadro atual. Para se ter uma idéia dos números, com a demarcação da reserva Raposa Serra do Sol, o Estado de Roraima se inviabilizaria enquanto entidade federativa. Terras indígenas, preâmbulo para nações indígenas, constituiriam 46,74% de toda a área estadual. Se acrescentarmos as unidades de conservação estadual, federal e outras, chegaremos ao total de 74,6% de áreas destinadas.
O que está sendo pleiteado pelos "arrozeiros", os "bandidos", seria uma área de apenas 4,76% da área demarcada, na verdade, algo insignificante, mas extremamente importante do ponto de vista econômico-social. Na verdade, são esses empreendedores e seus trabalhadores que estão viabilizando economicamente o Estado, de modo que ele possa vir a sobreviver somente com os seus meios. Trata-se de uma ilha de prosperidade, um pedaço de Primeiro Mundo, numa terra que clama por progresso. Sob esta ótica, o que está em jogo é uma luta entre os que querem a prosperidade e os que procuram inviabilizar essa unidade federativa. Tenderia a dizer que são invejosos, defendendo o atraso, não querendo o progresso de todos, aí incluindo os índios.
Manter simplesmente o status quo, como pretendem as ONGs nacionais e internacionais, assim como um setor governamental, equivaleria a colocar sérios entraves ao seu desenvolvimento, como se o seu destino fosse tornar-se um zoológico internacional, bancado pelos pagadores de impostos, para ser visitado por turistas que, logo após, iriam embora.
A questão, no entanto, reside nos administradores do zoológico, que poderá ser dito decisivo para a humanidade no seu conjunto, em cujo caso os seus gestores poderiam ser uma entidade ou ONG internacional. Assim colocada, essa questão não é meramente retórica, pois os defensores da demarcação contínua fundamentam a sua ação numa consideração dos povos indígenas como nação. Ou seja, poderão ser amanhã considerados como uma nação propriamente dita, independente em sua administração e vindo a ter reconhecimento internacional. Não é casual que a questão indígena brasileira se tenha tornado uma questão propriamente internacional, como se a soberania brasileira fosse relativa, como a propriedade dos empreendedores rurais.
Exemplo particularmente claro disso foi a visita feita por dois índios da região a vários países europeus, com todo o apoio da Igreja Católica. Não é, aliás, de estranhar esse engajamento da Igreja, porque, na verdade, é ela que termina dirigindo a política indigenista, por intermédio do Conselho Indigenista Missionário (Cimi). Em nome de seu direito à "autodeterminação", fizeram esse périplo, sendo recebidos pelo papa, na culminação dessa busca pelo reconhecimento. Reconhecimento de quê? Reconhecimento de uma "nação" que passaria a se determinar autonomamente, sendo, em contrapartida, reconhecida pelos estrangeiros. Ressalte-se que essa "missão" fala por si mesma, pois exibe, pelo seu comportamento, o que eles almejam no futuro: ser membros de uma entidade que se relacionaria, enquanto nação, com outras nações.
Como poderia um ente federativo, chamado Estado, sobreviver se praticamente 50% do seu território seria constituído por nações indígenas? Suas ilhas de prosperidade seriam aniquiladas, pois têm a conotação negativa de pertencerem a "fazendeiros", tidos praticamente por não-brasileiros. Na verdade, o Estado de Roraima seria constituído progressivamente de distintas nações, que, mesmo para a exploração do subsolo, rico em minérios, deveriam ser previamente consultadas. E se dissessem não, o que aconteceria? Mandaria o governo a Polícia Federal para desalojá-los, como fez contra os proprietários, os trabalhadores, os brancos e os índios, numa demonstração ostensiva e truculenta de força?
* Artigo publicado no jornal O Estado de S. Paulo em 21/07/2008
Denis Lerrer Rosenfield é professor de Filosofia na UFRGS.