O que é necessário para  
inibir os conflitos agrários

Em Morte e Vida Severina, um dos maiores poemas sociais brasileiros, depara-se com a história de homens que trabalham a vida inteira e só conseguem um pedaço de terra quando morrem. A terra que foi concedida para que fossem enterrados. Mesmo com a diretriz constitucional que determina a erradicação da pobreza, a redução das desigualdades sociais e a reforma agrária, uma massa de pessoas sem-trabalho, sem-teto, sem-terra e sem-dignidade continua a encontrar o seu único pedaço de terra quando de sua morte. Morte muitas vezes antecipada por conflitos violentos pela posse da terra.  

Nos acampamentos à beira de rodovias, a regra é que nada se aprende, nada se cria, nada se planta, "mas o sol, de sol a sol", embaixo de lonas pretas, "se aprende a suportar" à espera de uma migalha em forma de cesta básica ou Bolsa-Família. Perde-se o pouco da dignidade que se tem em prol da visibilidade que os estrategistas do MST buscam na sofrida espera por um pedaço de terra. Um acampamento à beira da rodovia, em frente ao Palácio do Governo, diante do Incra ou de propriedades da Vale do Rio Doce garante um lugar de destaque na imprensa.

A população brasileira, acostumada com reivindicações por melhores condições de trabalho e salário, com passeatas de professores ou servidores de saúde e greves organizadas pelas centrais sociais, vê com bons olhos a pressão popular sem violência ou abusos. Essas manifestações sociais, quando pacíficas, são bem-vindas e dão a necessária visibilidade às reivindicações que se pleiteiam. Equivocam-se, contudo, os movimentos sociais agrários ao entenderem que só com a força e a revolução se poderá mudar a trajetória da reforma agrária brasileira.

As ocupações realizadas por esses movimentos sociais agrários são legítimas quando realizadas em latifúndios improdutivos, que não cumprem a função social, desde que a ocupação seja pública, não-violenta e temporária, com a finalidade de mostrar ao governo onde estão os imóveis passíveis de desapropriação e, assim, acelerar a reforma agrária.

A reivindicação dos movimentos sociais pela execução da reforma agrária é um pleito justo que deve fazer parte do exercício ativo de cidadania. Contudo, é preciso agir sem desrespeitar o Estado Democrático de Direito. Não se pode apoiar a ocupação de propriedades particulares produtivas, bancos e órgãos públicos para forçar o governo a desapropriar, a liberar créditos ou licenças ambientais sem os critérios regulares de cada instituição. Tal situação desvia a função da pressão popular que é buscar o bem comum, para, na prática, beneficiar um número limitado de "clientes" dos movimentos sociais.

Quando pacífica e motivada pelo bem comum, a pressão social é um excelente mecanismo de inclusão de temas relevantes nas agendas políticas, de resistência às leis injustas, de modificação de políticas governamentais ou de práticas sociais equivocadas. Serve também para obter o apoio ativo da opinião pública para a causa a que se defende. O equívoco está na insistência do pensamento de que os fins justificam os meios. Em verdade, a impunidade dos atos contrários à lei se transforma em licença para praticar novos abusos.  

É do governo a responsabilidade de conciliar os interesses de proprietários e não-proprietários, evitando que o conflito se agrave culminando na perda de vidas em conflitos agrários. É dever do governo: desapropriar terras improdutivas que não cumprem a função social, conceder indenizações aos proprietários, cadastrar, assentar e garantir crédito às famílias sem-terra. Enfim, estabelecer uma política agrária e executá-la conforme o planejado, fugir do mero discurso e atuar com efetividade. Se assim não o for, a sua acomodação diante das violações da lei causará um dano de difícil e demorada reparação a todo o ordenamento jurídico do país.

Mas o que é preciso para evitar os conflitos agrários? A reforma agrária deve ocorrer de acordo com a lei. Aos movimentos sociais agrários cumpre fazer conhecer suas reivindicações para conseguir o apoio da população à causa da reforma, atuar junto ao Congresso Nacional, eleger representantes políticos, atuar sem abusos e sem excessos. Devem utilizar os caminhos da democracia. Ao governo, cabe agir no cumprimento da lei e da agenda programada com os movimentos sociais. Quanto aos proprietários, estes devem reconhecer que o valor da vida é infinitamente superior ao valor da propriedade. E, finalmente, que cada ser humano merece muito mais que um pedaço de terra para ser enterrado.
 

Valdemar Bernardo Jorge

é mestre em Direito Econômico e Social, advogado e professor de Direito da Unicuritiba.

(Texto publicado no jornal Gazeta do Povo)

 


Boletim Informativo nº 1005, semana de 19 a 25 de maio de 2008
FAEP - Federação da Agricultura do Estado do Paraná
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