A estabilidade monetária, herança bendita deixada pelo governo do presidente Fernando Henrique Cardoso, vem apresentando nos últimos meses leves sintomas de ebulição. A febre inflacionária medida pelo IPCA - o índice oficial de aferição - chegou a 0,55% no mês de abril, taxa sete décimos superior à do mês passado. A continuar neste ritmo, estará fatalmente comprometido o alcance da meta de inflação de 4,5% fixada pelo governo para o exercício de 2008, já que só nos primeiros quatro meses do ano o índice bateu em 2,08%.
Como sempre, logo se identificou o culpado por este tremor: é a alta dos preços dos produtos alimentícios que o está provocando.
A comida dos brasileiros ficou 1,29% mais cara em abril e, na ponderação dos vários fatores que compõem o índice de inflação, representou metade da taxa verificada para o período. Os produtos derivados de trigo é que apresentaram a maior variação. O pãozinho subiu mais de 7%; a farinha, quase tanto; o macarrão, 2%.
Quem viveu os tempos em que a taxa mensal chegou à beira de 40% deve se lembrar que, também naquela época, a inflação vinha do campo e invadia as cidades. O chuchu, por exemplo, foi eleito um dos piores vilões daquele período. Agora, quer se jogar a culpa novamente nos produtos de origem agropecuária pelo solavanco.
É preciso ir devagar com o andor e examinar o problema sob uma perspectiva mais ampla. Em primeiro lugar, é necessário lembrar que vivemos sob o regime da economia de mercado. O livre comércio, que faz flutuar os preços de acordo com a irrevogável e universal lei da oferta e da procura, explica perfeitamente o fenômeno que atormenta agora as autoridades responsáveis pela manutenção da estabilidade. Em segundo lugar, é preciso saber de quem é a culpa pelo desequilíbrio entre a oferta e a demanda que provocou a alta de alguns produtos estratégicos.
O trigo - e não mais o chuchu! - serve
bem para testar a hipótese de que não está na ineficiência dos
produtores rurais brasileiros ou numa eventual especulação selvagem que
estivessem promovendo a explicação pela alta do pãozinho.
Nem se deve jogar a responsabilidade sobre os padeiros. Na verdade, a hipótese que mais se aproxima da verdade é que a alta do trigo e de seus derivados é resultado da histórica desatenção do governo quanto à necessidade de expansão interna da cultura.
De fato, o país, nos anos 80 e na primeira metade dos 90 do século passado, esteve próximo de alcançar a auto-suficiência. Terras apropriadas, clima favorável em algumas regiões e variedades adequadas nunca faltaram para que esta condição pudesse ser indefinidamente mantida ou ampliada. Entretanto, o governo decidiu-se por uma política que representou, na prática, a extinção da produção própria, na medida em que deixou de oferecer aos agricultores garantia de renda.
O Brasil importa da Argentina mais da metade de suas necessidades de trigo. Custos de produção menores e fretes mais baixos fazem o cereal chegar ao país a preços mais baixos do que os obtidos internamente. Não há como o agricultor nacional concorrer com o argentino, o que o fez desistir da cultura. Entretanto, a dependência a que fomos levados tem seu preço: bastou a Argentina adotar restrições à exportação para que os preços disparassem no Brasil, provocando a alta da nossa taxa inflacionária.
É preciso lembrar que, mais do que qualquer outro fator macroeconômico, foi a agricultura que bancou a estabilidade monetária do país. Os alimentos que chegam à nossa mesa, hoje, são significativamente mais baratos do que o eram há dez anos, como bem prova a pequena evolução da série histórica da cesta básica. Decorrência, sem dúvida, da extraordinária modernização e desenvolvimento do agronegócio, que alcançou e beneficiou todos os produtos - menos, exatamente, a cultura do trigo. A desatenção e o desestímulo cobram agora o seu preço.
* Editorial do jornal
Gazeta do Povo de 11 de maio de 2008