São inúmeras as ações de apoio do governo atual aos movimentos ditos sociais e ao MST em particular. A dificuldade consistiria simplesmente em listá-las. A lei não é a eles aplicada, de tal maneira que podem gozar de total impunidade. E gozam de todos nós! A lei que impede a vistoria e a desapropriação das propriedades invadidas e retira os invasores da lista dos assentáveis não é observada. Propriedades são invadidas com violência - foices e facões, alguns especialmente comprados para amedrontar os proprietários e os seus funcionários, são armas brancas de uso corriqueiro. Maquinário é destruído, pessoas são feitas reféns, galpões são incendiados, sedes são depredadas - e tudo isso é chamado de "ocupações pacíficas". O politicamente correto parece não ter mais limites, embora seja uma forma travestida dos regimes totalitários, socialistas, do século 20 e dos seus êmulos do século 21. A reforma agrária nada mais é do que um pretexto, que tem a função de justificar essas ações perante a opinião pública.
Os proprietários rurais e, agora, também os urbanos são vítimas dessa violência. Não se trata de reforma agrária, mas da eliminação do capitalismo, mediante a relativização preliminar da propriedade privada. O objetivo consiste em instaurar o socialismo autoritário em nosso país, tendo como guia as experiências cubana e venezuelana. Eis por que a bandeira do "latifúndio improdutivo" desapareceu do horizonte, pela simples razão de que ele não existe mais no País, senão marginalmente. O Brasil já efetuou a reforma agrária, a da moderna propriedade rural e do agronegócio. O que o MST procura atingir são empresas-símbolo do que o País tem de mais avançado em termos de sucesso, como a Aracruz e a Vale. Estas têm sido objeto das mais diversas arbitrariedades, tendo dificuldades em ter os seus bens preservados e fazer respeitar a lei. Mesmo tendo decisões judiciais a seu favor, estas parecem não ter nenhum valor, pois o MST e as organizações suas congêneres não consideram o Estado de Direito e a democracia representativa dignos de respeito.
As coisas, no entanto, tendem ainda a piorar. Uma prova contundente é recente documento da Ouvidoria Agrária Nacional, datado de 28 de fevereiro deste ano, intitulado Diretrizes Nacionais para Execução de Mandados Judiciais de Manutenção e Reintegração de Posse Coletiva. Com efeito, a Ouvidoria quer-se arrogar o direito de determinar as condições de execução de reintegração de posse, como se fosse um poder independente que agiria por cima dos governos estaduais. Sua pretensão consiste em impor condições às Polícias Militares para a execução desses mandatos, pondo-se na posição dos governadores estaduais. Trata-se de uma nítida usurpação destes governos. Na prática, equivaleria também a colocar-se na posição de um Poder Judiciário, cabendo, então, ao Ministério de Desenvolvimento Agrário decidir sob que condições uma sentença judicial deveria ser cumprida. A situação, na verdade, seria a seguinte: caberia a simpatizantes ou militantes dos movimentos sociais decidir se eles mesmos abandonarão ou não uma invasão. O MST e a Comissão Pastoral da Terra (CPT) seriam os novos juízes deste país, numa medida de cunho autoritário.
Segundo consta das Diretrizes, a unidade policial, ao receber a ordem de desocupação, deveria articular-se com os demais "órgãos da União, Estado e Município (Ministério Público, Incra, Ouvidoria Agrária Nacional, Ouvidoria Agrária Estadual, Ouvidoria do Sistema de Segurança Pública, Comissões de Direitos Humanos, Prefeitura Municipal, Câmara Municipal, Ordem dos Advogados do Brasil, Delegacia de Polícia Agrária, Defensoria Pública, Conselho Tutelar e demais entidades envolvidas com a questão agrária/fundiária) para que se façam presentes durante as negociações e em eventual operação de desocupação". Isto é, uma ordem judicial seria submetida à avaliação, para o seu cumprimento, de um número enorme de instâncias, cada uma devendo dar sua opinião e estar presente durante o processo dito de desocupação. Uma ordem judicial seria submetida a uma espécie de "assembléia", que teria a incumbência de impor condições para a sua execução. Na verdade, nenhuma reintegração de posse seria cumprida em nosso país. O Estado de Direito cessaria totalmente de funcionar graças a uma instância que agiria segundo as determinações dos "movimentos sociais". Teríamos uma subversão completa da democracia representativa, em nome de uma suposta "justiça social".
Outro item, próprio de uma comédia de mau gosto, se não fosse essa a própria realidade, é o de que não caberia à força pública a "destruição ou remoção de eventuais benfeitorias erigidas no local da desocupação". Ou seja, um grupo que age violentamente, destruindo as propriedades invadidas, deveria ser recompensado por suas "benfeitorias", que seriam preservadas. É surrealista: um grupo que destrói as benfeitorias privadas que encontra em seu caminho deveria ter assegurada as suas "benfeitorias". A propriedade privada deixaria de ser propriedade dos seus legítimos donos, passando a ser propriedade dos invasores, que teriam a proteção da polícia. As tendas de lona e as "terras" aradas rapidamente para fazer de conta que algo teria sido feito deveriam ser, assim, preservadas.
O documento faz também menção aos cuidados que deveriam ser tomados com mulheres, crianças e idosos. Interessante. Nenhuma palavra é dita sobre o fato de que o MST utiliza crianças e adolescentes como escudos para suas invasões, num desrespeito flagrante ao Estatuto da Criança e do Adolescente. É essa mesma organização política que desrespeita tão claramente a lei. E agora vem a Ouvidoria Agrária dar um respaldo aparentemente jurídico a essa situação, numa inversão completa da realidade.
Se assim continuar, amanhã as invasões serão feitas sob proteção policial!
Denis Lerrer Rosenfield é professor de Filosofia na UFRGS.
E-mail: denisrosenfield@terra.com.br
Publicado no Jornal O Estado de S. Paulo de 29 de abril de 2008