Encarte Especial

MST, degradação ambiental
e desaparecimento da fauna

Bióloga Teresa Cristina Castellano Margarido
Museu de História Natural de Curitiba


Fazenda Rio das Cobras

A Fazenda Rio das Cobras, no sudoeste do Estado do Paraná, situava-se numa região de junção entre a Floresta de Araucária e a Floresta Estacional Semidecidual. O fato de estar numa zona de contato conferia à região uma grande e característica diversidade biológica.

Localizada na margem direita do Rio Iguaçu, a fazenda ocupava aproximadamente 80.000 hectares. Seu uso principal era a produção florestal, gerando produtos como papel, celulose e painéis destinados à exportação. Parte da área também era usada para o cultivo de soja, milho e erva-mate. O restante encontrava-se coberto por florestas nativas e pelas florestas plantadas com pinus, eucalipto e araucária. Uma particularidade da fazenda era que as monoculturas florestais eram entremeadas com as florestas nativas, formando um mosaico que conferia à área características ecológicas importantes.

Os remanescentes de florestas nativas somavam aproximadamente 40.000 hectares e, apesar da intervenção humana através dos planos de exploração madeireira, constituíam uma importante área de vegetação contínua, limitada pelas áreas de cultivo e pelas usinas hidrelétricas de Salto Santiago e Salto Osório, constituindo-se numa grande ilha florestal.

Na fazenda Rio das Cobras foi registrado um conjunto faunístico rico e característico das florestas originais da região, representado por cerca de 70 espécies de mamíferos e mais de 300 espécies de aves. Entre os mamíferos, muitos são considerados ameaçados de extinção como anta, veado-mateiro, porcos-do-mato, suçuarana, onça-pintada, jaguatirica, bugio-ruivo, lontra, paca, entre outras. Várias das aves que ali existiam também estão ameaçadas, como jacutinga, macuco, gavião-pombo e papagaio-de-peito-roxo.

Na região existiam duas espécies de porcos-do-mato, o cateto (Tayassu tajacu) e o queixada (Tayassu pecari), ambos originalmente distribuídos por grande parte do continente americano. Apesar do pouco conhecimento que se tem sobre a biologia do queixada, sabe-se que devido ao seu hábito de formar grandes grupos, eles necessitam de áreas extensas e contínuas para obter recursos ao longo do ano. Atualmente, as maiores ameaças à sobrevivência desses animais são a perda do ambiente natural para a ocupação humana e a pressão exercida pela caça. Como resultado o queixada vem desaparecendo e encontra-se listado como "criticamente ameaçado de extinção" na lista oficial de espécies ameaçadas no Paraná.

O manejo da fauna



Manejo de queixadas (Tayassu pecari) na Fazenda Rio das Cobras.

O projeto foi iniciado em janeiro de 1996 com a implantação de diversos pontos de estudo na fazenda, nos quais pesquisadores passaram a capturar e marcar os animais para posterior monitoramento. O objetivo era estudar o comportamento da população e sua dinâmica nos diferentes ambientes para que a sua


   Queixadas e catetos sempre ocorreram na Fazenda Rio das Cobras, porém, a partir da década de 90, passaram a causar prejuízos às culturas de milho e aos plantios de araucária. Esse aparente aumento populacional requereu a implantação de um projeto de pesquisa e manejo das espécies, sugerido pelo IBAMA.

conservação pudesse ser assegurada naquela área.

 

As invasões do MST



Invasão em áreas de floresta nativa na Fazenda Rio das Cobras


   Após o início das pesquisas, no entanto, a Fazenda Rio das Cobras sofreu a primeira invasão pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), em abril de 1996. A grande dimensão e a agressividade da invasão exigiram a desativação de alguns pontos de estudo, prejudicando não somente as pesquisas em andamento, mas as próprias populações animais. Até este momento, 160 animais já haviam sido marcados individualmente e 260 capturas e recapturas haviam sido realizadas.

As 10.000 pessoas que invadiram parte da fazenda  passaram  a  derrubar  a  floresta e a

caçar as espécies animais ali encontradas. O contato com os animais que já haviam sido marcados foi sendo perdido, tornando impossível continuar as pesquisa naquela região.

Além disso, também se tinha notícia de que carne de caça estava sendo vendida clandestinamente nas cidades próximas, deixando claro que a caça não era praticada para subsistência. Entre as espécies caçadas constavam pacas, antas, veados, catetos e queixadas, inclusive animais que, segundo relatos, haviam sido marcados pelos pesquisadores.

Em julho de 1997 o INCRA desapropriou 17.000 hectares da fazenda e assentou 900 famílias na localidade invadida inicialmente. Em agosto do mesmo ano, no entanto, as famílias excedentes invadiram mais 13.000 hectares da fazenda, intensificando a destruição da vegetação e da fauna, obrigando os pesquisadores a encerrarem as atividades de pesquisa definitivamente. Mesmo a empresa proprietária da fazenda determinou a retirada dos funcionários da área devido à falta de segurança e ao risco de vida a que ficariam expostos.

Desde a primeira invasão em 1996, os pesquisadores tentaram inutilmente denunciar e divulgar o crime ambiental cometido na Fazenda Rio das Cobras, "incoerentemente rotulada como latifúndio improdutivo". Tanto a imprensa como as próprias instituições governamentais competentes (IBAMA e IAP) ignoraram o impacto ambiental que isso significava. Segundo carta enviada a estas instituições e à imprensa pelos pesquisadores "...todos os esforços para conseguir apoio foram em vão e queremos deixar claro nosso repúdio diante da inoperância, da letargia e do despreparo político e legal que atualmente dominam nosso país."


A devastação dos remanescentes florestais

Da área original de 79.494 hectares da Fazenda Rio das Cobras, 26.252 hectares foram desapropriados entre 1997 e 1998 para implantação de assentamentos. Restavam, até então, 53.242 hectares da área total da fazenda, dos quais apenas 50% (23.572 hectares) correspondiam à área anteriormente ocupada pela floresta nativa.

Após a desapropriação ocorreram três novas invasões, entre 1999 e 2000, verificando-se novamente a completa devastação devida ao desmatamento e às queimadas provocadas pelo MST. Essa degradação ambiental é facilmente constatada através da análise das imagens de satélite, feitas menos de dois anos após a desapropriação.


A destruição da fauna

Catetos e queixadas só são predados na natureza pela onça-parda e pela onça-pintada. Por isso, muitos pesquisadores afirmam que somente o homem é capaz de afetar significativamente as populações desses animais, seja pela caça, seja pela devastação das florestas.

As características biológicas do queixada o fazem mais susceptível às ações do homem do que o cateto. Eles são fortemente gregários e formam grandes bandos, que chegam a centenas de animais, necessitando de grandes áreas bem conservadas para atenderem suas necessidades e para que possam completar seu ciclo de vida. Isto torna a espécie altamente vulnerável à extinção em áreas florestais fragmentadas.


A extinção do queixada pelo MST

Durante os anos de pesquisa da fauna na Fazenda Rio das Cobras, foi possível estudar as características ecológicas do queixada acrescentando uma importante contribuição para o conhecimento dessa espécie.


   Anteriormente às invasões do MST, a fauna local dependia fundamentalmente da existência e da continuidade das florestas remanescentes. Com a completa destruição das florestas nativas, muitas das espécies não conseguiram mais sobreviver nos fragmentos degradados em que se transformou a Fazenda Rio das Cobras após as invasões. Com a alta pressão de caça exercida pelos invasores, não restaram muitas chances de sobrevivência para as populações do queixada e também de outras espécies animais.

Segundo pesquisas realizadas em outras


regiões, o tamanho mínimo de uma área nativa para que um único grupo de queixadas consiga sobreviver seria de 2000 hectares. Após as invasões, a floresta nativa da fazenda ficou reduzida a fragmentos florestais, sendo que a maioria deles com menos de 1000 hectares, inviabilizando a presença desses animais.

Assim, ao invés de se ter tido a oportunidade de estudar e manejar um possível excesso populacional do queixada num privilegiado remanescente da floresta original do Paraná testemunhou-se, em menos de três anos, o severo comprometimento da população, senão sua completa extinção local.


Boletim Informativo nº 843, semana de 22 a 28 de novembro de 2004
FAEP - Federação da Agricultura do Estado do Paraná

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